Alguns aspectos da pré-história da Língua. 1ª Parte.





Por José Manuel Barbosa


Introdução

      O Reino de Portugal, e hoje a República Portuguesa, foi e é um Estado subversivo dentro da península Ibérica como tal Estado existente. Foi e é o único território fora do projeto nacional e político castelhano. Mas ainda isso ser assim, a narração dos fatos históricos e linguísticos estão peneirados por uma visão que em poucas cousas se ajusta à realidade passada.
      A historiografia portuguesa, assim como a linguística obviam muitas vezes que Portugal teve uma base originária no velho Gallaeciense Regnum criado pelos suevos na Gallaecia em 410-411, e foi lá onde surgira a língua que hoje é conhecida internacionalmente com o nome de “português”, de base fundamentalmente latina mas também com um sustentamento substrático Galaico-Lusitano proto-céltico que lhe dá uma identidade acrescentada.


        A maior parte das histórias da língua elaboradas tanto na Galiza como em Portugal, e ainda em outros países, começam na época das cantigas ou pouco antes, quando se tem conhecimento dos primeiros documentos escritos. Mas anteriormente, em épocas –vamos chamar-lhes- “pré-históricas” (anteriores aos primeiros documentos escritos galego-portugueses conservados na atualidade) também a língua que nos ocupa já existia de qualquer forma na vida diária dos seus utentes, forem estes galegos, portugueses ou de outros países peninsulares.
        O fato de a nossa língua ter sido usada em mais território peninsular do que atualmente, em ser usada antes das cantigas, em ter sido a língua do projeto unificador peninsular sob dirigência galaica e ainda a sua marcada personalidade atlântica e céltica (embora sendo língua de base latina) fazem da sua história e pré-história um reto à hora de reconstruirmos o seu percurso pelo tempo, bem pela importância que ela teve e ainda tem, bem porque nos dá conhecimento de que na península há um elemento tremendamente agressivo de signo castelhano que não se ajusta a realidade histórica sobre as origens, deturpa até onde o deixam e elimina se tiver oportunidade, com a única finalidade de ocupar todo o espaço ibérico numa Grande Castela com o falacioso nome de Espanha.
        Há dous momentos na história ou pré-história da nossa língua que são fulcrais para a conformação da nossa personalidade: É o primeiro aquele no que o latim entra e se mescla com a nossa língua pré-romana conformando o que depois há de ser o galego-português; e o segundo, o momento no que o Gallaeciense Regnum hegemónico na península prepara um projeto de futuro Estado usurpado posteriormente por Castela mas de irrefutável importância tanto do ponto de vista historiográfico como do ponto de vista linguístico.
        Neste trabalho vamos falar de tudo isto:
  • Momento 1º. O Galaico-Lusitano. Substrato do Galego-Português
Segundo os pré-historiadores, linguistas e arqueo-linguístas, a península Ibérica antes da chegada dos romanos estava conformada por várias línguas. Umas delas de origem indo-europeu, outras de origem mediterrânico.
        A parte norte-ocidental corresponder-se-ía com uma língua que os cientístas denominaram com o nome de Lusitano ou  como diz Ulrich Schmoll (1959), Galaico-Lusitano, por serem a Gallaecia romana e a Lusitânia originária (entendida como o berço do povo lusitano, não da província romana) a região na qual se falaria essa língua.
        As provas que falam da existência deste Galaico-Lusitano estão em vários achados litográficos de época imperial romana. Ajustamos a época e deduzimos isto último por estarem escritos com a ortografia latina. São estes achados os de Lamas de Moledo (Évora), Cabeço das Fraguas (A Guarda), Villalva de Villastar e Arroyo de la Luz (Cáceres) os mais conhecidos.
        O espaço que poderiam ocupar haveria que reconstruí-lo a partir, não só pela localização destas inscrições conhecidas mas também pela onomástica, a toponímia e a teonímia.
        No que diz respeito são de grande ajuda os mapas elaborados pela professora Fdez-Albalat (1990: 422-427) e as opiniões de Rosa Brañas (1995: 211-253) e Higino Martins (2008: 151, 529, 543).
Com isto, também nós quisemos elaborar um mapa desde a nossa modéstia. Eis:
         
A língua galaico-lusitana poderia ser identificada como uma língua celta ou proto-celta como nos comenta Armada Pita (1999: 260-263) mas ainda a ideia de ser a partir do conhecimento das línguas celtas donde pode ser possível a tradução dos textos conservados e/ou a compreensão dos mesmos reafirma o parentesco entre esta língua da que estamos a falar com o celta antigo.
        É por isso polo que  nos diz a professora Fdez-Albalat (1996: 39):


        “Segundo a minha opinião, estamos perante uma rama celta (possivelmente anterior à divisão entre goidels e britões, ou bem uma terceira rama) de um tipo arcaico”
        A identificação como língua celta é discutida por alguns autores argumentando que algumas palavras possuem um /p/ inicial inexistente neste grupo de línguas, tanto nas actuais como nas antigas. Mas é o professor valenciano Xaverio Ballester (1998: 65-82) quem nos diz:


        “O problema na realidade não é a presença linguisticamente incorrecta do /p/, mas a posição geograficamente incorrecta dos lusitano. Se essa mesma documentação que possuímos para o lusitano, tivesse aparecido, por exemplo, em alguma zona próxima aos Alpes, previsivelmente a linguística indo-europeia tradicional consideraria tal documentação uma testemunha da primeira rama separada da árvore céltica, dessa fase ainda com /p/ que, por ser língua indo-europeia reconstruímos como céltica”
        Atendendo ao trabalho de Robert Omnès (1998: 247-268) professor da Universidade de Brest, o galego-português tem uns importantes elementos substráticos celtas que determinariam a nossa língua como um “patois” celto-latino. Alguns desses elementos seriam os seguintes:



1-       Léxico (algumas palavras de origem céltico):  Álamo, Amieiro, Arámio, Armela, Arnela, Banastra, Banço, Baraça, Beiço, Berberecho, Berço, Bico, Bilha, Biqueira, Beco, Boedo, Borrão (Borreira), Boto, Bosta, Braga, Branda, Breja, Briga, Bringa, Brio, Brião, Brigar, Broa, Brusca, Bugalho, Bulhato, Burato e Buraco, Cabana, Calhau, Calouro, Camba, Cambo, Cambelo, Cambela, Cambadela, Comboa, Gamboa, Cambote, Comba, Caminho, Camisa, Canga, Cantiga, Carpinteiro, Carraboujo, Carro, Cagigo, Centola, Cerco e Cerquinho, Cerveja, Colmo, Colmeia, Cróio ou Coio, Cheda, Duna, Embaixador, Embelga, Estancar, Fatão, Gancho, Ganço, Gato, Gorar, Granha, Grenha, Lama, Lança, Lasca, Lata, Lapa, Lapão/Lapote/Lapada, Lastra/Alastrar, Lavego/Aviecas/Aveacas ou Aviacas, Lagem, Lage, Laja, Lagea, Légua, Lia, Lousa, Maninha, Melão, Pala, Peça, Pena, Penedo, Penelo/a, Penouco, Pucareiro, Penouto e os colectivos, Penedal, Penasquedo, Penedia, Pico, Rodavalho, Saia, Seara, Soco, Soca, Tona, Touca, Trade, Tranca, Vasalo, Vidoeiro, Virar, Viradeira, Virouteiro, Pau-Viradoiro, Viração, Virolho, Vranha…


2-       Semântica:
a) Preferência polo verbo Ser em vez de Ter em frases possessivas do tipo:



b) Uso da forma “Levantar” (“Sevel” em bretão) com o sentido de “construir”. Por exemplo em francês seria «construir une maison» ou no espanhol «construir una casa», mas em galego-português e em bretão…


3-       Fonética e Fonologia
a) O /k/ implosivo devém num yod ante /t/ explosivo como em irlandês
b) Em Gal-Port os ditongos descendentes são os mais numerosos, o que se explica pelo modelo silábico céltico.

c) Evolução dos grupos /KL/, /PL/, /FL/ iniciais: 




d) A metafonia que Rafael Lapesa (1991:44) identifica como celta:

                            

4-       Morfo-Sintaxe 
a) A repartição dos géneros: Os nomes das árvores são femininas em Gal-Port e em bretão. 
b) O cal, o labor, o nariz, o sal, o mel, o leite, o sangue, o cume…como em bretão (por exemplo em outras línguas latinas como o espanhol são palavras femininas).
c)  A mesma forma pode ser utilizada pelo adjectivo qualificativo e o advérbio tanto em bretão como em Gal-Port


d) O durativo no infinitivo:



O Galego-Português é a única língua romance que partilha esta característica com as línguas célticas.


e) Perguntas e respostas: Em Gal-Port as respostas não são “sim” ou “não” como, por exemplo em Gaélico escocês:



                  



Alguns textos Galaico-Lusitanos
-Texto de Lamas de Moledo
”Rufinus et Tiro scripserunt: Veaminicori doenti angom lamatigom crougeai magareaigoi petranioi radom porgom ioveat Caeliobrigo”.
Este texto datado já em época romana (no século I d.C.) com introdução em latim viria significar o seguinte segundo a tradução de André Pena Granha, arqueólogo galego:
“Rufino e Tiro escreveram: Os Veaminicori (conjunto de jovens solteiros em idade militar) dão um anho lamático (de Lamas de Moledo, entende-se) para o altar de Petranioi (o oficiante), um grosso porco para o Júpiter do Castro de Caelio”


Segundo Higino Martins (2008:87) Veamini Cori ou Wegamenoi korioi significaria “os que viajam em carros”, quer dizer, “os chefes”, ou “senhores”.
-Texto da Pedra de Cabeço das Fráguas
”…Oilam trebopala indi porcom laebo commaiam iccona loiminna oilam usseam trebarune indi taurom ifadem(…) reve Tre(barune)”
Texto também de finais do Império com latinismos como “Porcom” e redigido na pedra para um ritual de tipo “suovetaurília” com o fim de proteger a Treba (território político sob a influência do povo que oferece o ritual). A sua tradução segundo Pena Granha:

“…uma ovelha para trebopala (protectora da Treba) e um porco para Laebo (divindade feminina), uma égua para a luminosa Iccona (deusa dos cavalos), uma ovelha dum ano para trebarune (a deusa protectora do país) e um touro dum ano para Reva, senhora da Treba.”




Bibliografia:
Armada Pita, X-L. (1999). Unha revisión historiográfica do celtismo galego. In “Os Celtas da Europa Atlántica. Actas do I Congresso galego sobre a cultura celta”. Ferrol. Agosto. 1997. Ed. Concello de Ferrol.
Ballester, Xaverio. (1998-99): “Sobre el origen de las lenguas indoeuropeas prerromanas de la Península Ibérica” In Arse, 32/3. Conferencia pronunciada o 23/03/99 durante as XIV Jornadas de la Sociedad Española de Estudios clásicos (Valencia 22-27-III-1999) com o nome de “La Filología clásica prerromana en España: pasado, presente, futuro”.
Brañas, Rosa. (1995). Indíxenas e Romanos na Galicia céltica. Ed. Libreria Follas Novas.
Carvalho Calero, R. (1983). Da Fala e da Escrita. Ourense. Galiza Editora. Ourense
Carvalho Calero, R. (1974). Gramática elemental del gallego común”. Galaxia. Vigo.
Coseriu, E. (1989): “El gallego en la história y en la actualidad” In “Actas do II Congresso Internacional da Língua Galego-Portuguesa na Galiza”. AGAL. Crunha. Página 797.
Garcia Fernandez-Albalat, Blanca. (1990). Guerra y Religión en la Gallaecia y la Lusitania antiguas. Sada-Crunha. Edicións do Castro.
Garcia Fernandez-Albalat, Blanca. (1996): ”La religión de los castreños” In SEMATA Ciencias Sociais e Humanidades 7-8. Las religiones en la Historia de Galicia. Ed. Garcia Quintela, Marco V. Universidade de Compostela
Lapesa, Rafael. (1991): “Historia de la lengua española”. Madrid. Ed. Gredos. Biblioteca Románica Hispánica. 9ª Ed. Corrigida e acrescentada.
Lopez Carreira, Anselmo. (2005): “O reino medieval de Galicia”. A Nosa Terra. Vigo
Mundy, John J. (1991):Europe in the High Middle Ages”. Longman. London and New York.
Omnès, Robert. (1999). “Le substract celtique en galicien et en castillan” In “Les Celtes et la peninsule Iberique”. Triade nº5. Université de la Bretagne Occidentale-Brest. Pp. 247-268.
Pena Graña, A. (1985): “O reino de Galiza na Idade Media”. Revista Terra e Tempo 2ª época, 1,
Rico, Sebastián (1973): “Presencia da língua galega”. Ediciós do Castro. A Crunha, 1973, pp 8-9
Rodrigues Lapa, M. (1981) : ”Lições de Literatura Portuguesa. Época medieval”. 10ª Edição. Coimbra Editora Limitada.
Saraiva, António J: (1995). Iniciação na literatura portuguesa. Gradiva. Lisboa. Pag.9
Schmoll, Ulrich (1959): “Die Sprachen der Vorkeltischen Indogermanen Hispaniens und das Keltiberische”. Wiesbaden. Otto Harrassowitz.
Sanchez Albornoz, C. (1956); España, un enigma histórico. Pág 420-423 do Vol 1º da 2ª Edição.
Valladares, M (1970): Elementos de Gramática gallega. Galáxia. Fundación Penzol. Vigo.
VV.AA (1996): Las religiones en la história de Galicia in SEMATA Ciencias Sociais e Humanidades 7-8 Ed. Garcia Quintela, Marco V. Universidade de Compostela
Wright, R. (1991): “La enseñanza de la ortografía en la Galicia de hace mil anos”. Verba, 18.

A Mudança de Paradigma 3ª Parte: Porque isto é assim? Conclusão



Por José Manuel Barbosa

Porque isto é assim?
Para o castelhanismo a funcionalidade deste paradigma é político-ideológico. Com esta forma de contar as cousas, o histórico imperialismo castelhano procura justificar a sua hegemonia na península e para isso não lhe é obstáculo falsificar a história, tanto mais se a Galiza foi quem chefiou originariamente o projecto de unificação peninsular que hoje leva sobre si a própria Castela com o nome de Espanha.


Fomos concorrentes e mesmo -acreditam-, ainda poderíamos sê-lo se nos identificarmos com o mundo português e lusófono já que por aí viria um acréscimo de forças que como mínimo fariam que Castela visse em perigo a sua hegemonia peninsular.

Essa manipulação de factos históricos, essa forma de fazer da Galiza um ninguém é uma maneira de desidentificação com ela própria e com a sua família etno-linguística para debilitá-la e mesmo anulá-la.

Tumba de Rodrigo Ximenes de Rada
Castela hoje é forte na península e nunca por parte dum português deveria haver um ideia iberista, porque com isso joga Castela para continuar o seu labor assimilador. A força de Portugal, o que ainda fica daquele projecto nacional galaico, estaria em debilitar Castela e essa debilidade está na aliança com a Galiza e o galeguismo. Isto, juntamente com estreitar laços de amizade e colaboração com outros povos da península ainda não castelhanizados fariam com que o hegemonismo castelhano não chegasse muito para além
      Conclusão
Se a Galiza se identificar linguisticamente e mesmo historicamente com os povos que conformam a sua família faria com que as forças tornassem a ela. Isto só nos ia trazer benefícios de todo tipo: políticos, económicos, sociais, culturais… por isso devemos saber agir com uma estratégia adequada mesmo sem poder político galeguista na Galiza que poderia tornar às nossas mãos mercê a essa inércia e sinergia. Qual seria essa estratégia?
a-      Ligações com o mundo céltico que reforçassem a ideia de Matriz da mesma e partilhando interesses atlânticos. Isso ligar-nos-ia com as Ilhas Britânicas e não só o mundo céltico, mas também o mundo anglo que a dia de hoje é o mais poderoso do planeta.


b-  Ligações com o mundo lusófono, com a galeguia, da qual também somos Matriz. Também isto achegaria benefícios já que pela nossa língua e os nossos recursos humanos estaríamos muito bem situados em relação a outros povos em vias de desenvolvimento. Para os galegos, a nossa fala deixaria de ser uma fala regional para ser a Matriz duma civilização com o que isso traz de beneficio. A riqueza material, e não só espiritual que a nossa língua ia trazer seria muito grande em relação com a que nos traz hoje e mesmo a que lhe traz a outros povos e outras língua que ainda com grande dignidade não têm o número de utentes que tem o português. O nosso relacionamento não seria o duma região periférica, mas de ônfalon à par de Portugal e Brasil com a força suficiente para evitarmos agressões culturais às que hoje estamos expostos e ainda com o futuro duma lusofonia que joga a ser potência mundial da mão do grande Brasil.


c-      Dentro da Galiza haveria que estruturar a conformação político-partidária de forma inteligente criando formações políticas que atendessem todas as camadas sociais sem excepção. A dia de hoje, só uma formação política de esquerda é que pode agir com certo poder político na Galiza (e para isso limitado). É o BNG (Bloco Nacionalista Galego), mas este não pode concorrer pelo voto com o PP já que os votantes são diferentes sociologicamente. Por outra parte o BNG não poderia governar nunca só e menos com maioria absoluta pelas circunstâncias que actuam na Galiza. O BNG não tem aliados nacionalistas pelo que qualquer oposição seria sempre brutal e maciça. A necessidade duma formação partidária de centro ou centro-direita dividiria o voto da direita, deixando o PP com menos força, menos votos e menos representação não permitindo mais maiorias absolutas desta formação não defensora dos interesses galegos perante os do Estado. A falta de maiorias obrigaria a pactuar para governar e mesmo poderia dar-se o caso no que o nacionalismo com o tempo chegasse a ter maiorias que levassem o projecto nacional galego a uma maior e melhor viabilidade. O nacionalismo poderia andar com os dous pés recorrendo à aliança quando for possível e à discrepância quando for útil. Só assim poderia ser possível evitar dar passos atrás no que diz respeito dos direitos dos galegos, da língua… Poderiam ser mais fáceis os avanços na construçom nacional podendo conseguir novos marcos legais que obrigassem o castelhanismo a recuar e mesmo a construirmos novas entidades políticas que garantissem a soberania social, cultural, linguística, política e mesmo mental da Galiza. Poderíamos colaborar com outras nações da península com o fim de equilibrar forças e reduzir o castelhanismo e torná-lo humilde num contexto que sempre o fez soberbos. Poderíamos evitar racismos e xenofobias anti-galegas como há hoje no Reino da Espanha e ainda dentro da Galiza .

Do nosso ponto de vista o nacionalismo galego deveria ter em conta esses três pontos de tal forma que a discussão de se somos rabo de leão ou cabeça de rato seria absurdo. Pela nossa história, pela nossa língua e pelo futuro que se nos poderia abrir, estaríamos a jogar a ser cabeça de leão.

A Mudança de Paradigma 2ª Parte: Que é o que se ensina na Galiza. O paradigma galeguista

Por José Manuel Barbosa 


Que é o que se ensina na Galiza?

A Galiza é politicamente um apêndice da Espanha, e isto é assim do ponto de vista legal-institucional como até o dia de hoje também é o País Basco ou a Catalunha. A Galiza também é um apêndice da Espanha no seguimento oficial da ideologia, muitas vezes, anti-galega, cousa que não acontece nos dous países antes nomeados que sabem defender os seus interesses políticos e económicos por acima do poder estatal. Assim, a Galiza reproduz o paradigma castelhanista tanto no ensino como maioritariamente na investigação, exceptuando honradíssimos casos como os de Camilo Nogueira, Anselmo López Carreira, João Bernárdez Vilar, José António López Teixeiro, André Pena Granha, Higino Martins Esteves, ou os históricos Ricardo Carvalho Calero e Ernesto Guerra da Cal, e ainda mais alguns que não nomeio por falta de espaço.






Nos estudos oficiais na Galiza ensina-se o seguinte:
·        A Cultura chamada Castreja e os Celtas têm pouco ou nada a ver, de forma que qualquer elemento civilizacional galaico se diz de origem mediterrânico. Na época romana a Gallaecia quase não existe. Tudo é latino do ponto de vista cultural e latim do ponto de vista linguístico. O elemento indígena não achega nada útil à formação da futura Galiza e Roma é quem a inventa. Antes de Roma não há nada. É o vazio.






·        Os suevos são um povo bárbaro, no senso pejorativo da palavra, que não deixa pegada nenhuma e o seu Reino é anedótico. Os suevos são bárbaros e os visigodos estão romanizados, o que significa que são mais civilizados. São estes últimos os que marcam a personalidade de toda a península incluída a Galiza. Não há elementos importantes e interessantes a salientar para a historiografia europeia no Reino Suevo, nunca Reino de Galiza ou Gallaeciense Regnum.






·        Os muçulmanos ocupam também a Galiza (porque ocupam “Hispania tota”) que já nesta altura se identificava territorialmente com a Galiza actual. Astúrias é um Reino que “reconquista” e “repovoa” Galiza (4) para a causa cristã e a importância do País do apóstolo São Tiago descoberto por um Rei asturiano é mínima. Galiza é um ninguém, não tendo qualquer protagonismo nem militar, nem social, nem económico, nem quaisquer outros. Nesta altura é Astúrias a importante que lhe passa a testemunha a Leão e esta finalmente a Castela. Durante toda a Idade Média a Galiza é um objecto passivo nos acontecimentos da parte cristã da península e passa a ser um “Reino” pontualmente duas ou três vezes por acidentes políticos que se reencaminham da mão de Reis com interesses leoneses ou castelhanos (que finalmente vinha a ser o mesmo). Ser Rei de Galiza (a Galiza entendida territorialmente como a de hoje, não como a real daquela altura) é como não ser nada e normalmente nem se nomeia na historiografia geral peninsular porque os Reis da Galiza são Reis muito pontualmente ou são segundões sem transcendência histórica. Tudo em função de Castela (ou Castela-Leão) (5)






·        A independência de Portugal conta-se como um acontecimento que tem “algo” a ver com a Galiza.




·        Algum Rei chamado o Sábio deu-se-lhe curiosamente por escrever em galego porque era esta uma língua muito linda e poética mas esse rei era castelhano e a língua por excelência de toda a historiografia oficial é a de Castela falada pelos personagens realmente importantes como o Cid,  ou o Rei do qual era bom vassalo como Afonso VI, também castelhano mas mal Senhor porque não defendia os interesses castelhanos.




·        Os séculos XIII e XIV são séculos de lutas dinásticas entre Reis e revoluções sociais, mas nada se diz do lugar que ocupa a Galiza em tudo isto, as autênticas motivações, interesses, apoios e projectos da Galiza nestes séculos. Também nada se diz do que Portugal faz a respeito de Galiza.




·        Os Reis chamados Católicos, Isabel e Fernando, foram os que “domaram e castraram” Galiza mas também são os que lhe dão gloria e unidade a Espanha. Há alguns que mesmo defendem na Galiza a conversão da Isabel I Trastâmara de Castela em beata como primeiro passo para a sua ascensão a Santa.




·        Nos chamados Séculos Obscuros (de final do S. XV até a chegada de Napoleão à península) só há história económica (6), a história política está reservada para a Coroa de Castela ou o Reino da Espanha que vinha ser o mesmo. Galiza era um país de camponeses e marinheiros sem qualquer poder político e por algum personagem mais conspícuo do que os outros porque serve à Coroa.




·        Durante os séculos XIX e XX Galiza só achegou escritores e galeguistas que não andavam metidos na política e por isso foram importantes. Todos eles sentiram-se muito espanhóis e o galeguismo é um pensamento mais do que nada cultural embora tivesse uma expressão regionalista que o espanholismo assume com normalidade. Mesmo o galeguismo nacionalista tinha disto último só o nome, porque todos os galeguistas defendiam a ideia de Espanha.


Qual é o paradigma galeguista?
Diz-se habitualmente que a história é contada sempre pelos vencedores. Neste caso, o paradigma galeguista é o que não triunfou e é por isso pelo que para além de não ser oficial, nem se ensina, nem se acredita nele. Mesmo as provas, as evidências, os documentos, os textos e as pessoas que os expõem tenham da sua parte toda a autoridade e a veracidade.
·         Antes de Roma o N.W. peninsular estava habitado por um povo proto-celta matriz dos celtas do mundo Atlântico. Assim é como no-lo demostram os estudos de várias universidades britânicas seguindo estudos genéticos e mesmo a moderna Teoria da Continuidade Paleolítica de Mário Alinei, Francesco Benozzo e ainda o anteriormente o Professor galego André Pena Granha que já expus esta teoria, pelo menos no que diz respeita ao Noroeste peninsular vários anos antes do que fosse exposto pelos professores italianos, mas como na Galiza tudo passa pela peneira castelhanista não houve forma de que transcendesse.




·         A língua dos chamados galaicos e lusitanos era a mesma e ocupava todo o Norte e o Oeste da península até o Tejo aproximadamente. Portanto, o parentesco galaico-lusitano era já anterior a Roma. Roma só dividiu pelo Douro com o fim de dividir para vencer. Prova importante para isto é que nas guerras lusitanas participassem tropas galaicas. Se os galaicos forem outro povo muito distante e alheio aos lusitanos essas guerras não seriam da sua incumbência e portanto não participariam.

·         Durante a ocupação romana, a Gallaecia foi uma das províncias do império mais sucedidas economicamente, culturalmente e do ponto de vista artístico sendo o elemento indígena fulcral. Figuras como Prisciliano, Egéria, Paulo Orósio, e Idácio Lémico foram prova da importância da Nossa Terra. A figura de Prisciliano poderia equiparar-se a outras paralelas dentro do mundo céltico e atlântico como São Patrício, São Davide ou Santo André. Aliás, Prisciliano, pode dar pistas a respeito do fenómeno Jacobeu já que há quem assegura que quem realmente está (ou estava) em Compostela não era São Tiago, mas Prisciliano. As provas não são determinantes, mas a lógica leva por esse caminho.


·         Os suevos, um povo germânico dos mais evoluídos e “romanizados”, constituíram na Gallaecia, a zona mais rica e desejável para eles da península, o primeiro Reino independente de Roma com um projeto militar e político de unificação peninsular com capital em Braga e com o apoio, colaboração e implicação dos galaicos que o sentiam como seu. A importância dos mesmos é grande: Com eles a Gallaecia constituiu-se no primeiro Reino medieval da Europa; foram os primeiros em emitirem moeda, o Sólidus suevo; os primeiros em legislar, administrar e construir um Estado; o primeiro Reino cristão após Roma; os criadores da mal chamada “letra visigótica” já que na realidade começou a existir na Gallaecia antes da chegada dos godos; os criadores da primeira arte pré-românica com elementos como o chamado arco de ferradura que na historiografia castelhanista diz-se visigodo; os primeiros em assumirem o cristianismo católico antes do que qualquer outro povo germânico, por isso a sua aceitação pelos galaicos. Na historiografia castelhanista diz-se que foram os visigodos os primeiros em aceitarem o catolicismo…


·         Durante a unificação suevo-visigótica a Galiza manteve a sua personalidade política e administrativa, cultural, social e económica, contrariamente à ideia castelhanista dum Reino unificado visigótico com capitalidade centralista em Toledo e primeira amostra de Estado Espanhol pan-peninsular. Os Reis tinham o título de “Reis de Espanha, Galiza e a Gália” entendendo que a Galiza e a Espanha eram realidades diferentes. A Gália num princípio ocupava a actual Ocitânia para posteriormente ficar só na Septimánia ou Narbonense.


·         A entrada dos muçulmanos na península deve-se à chamada dos vitizanos galegos. O domínio muçulmano da Espanha excluía por definição a Galiza fazendo desnecessária qualquer intervenção militar por parte destes por contarem com o apoio dos seus aliados vitizanos que eram quem tinham o poder na Galiza. Posteriormente a Galiza manteve um vazio de poder no conjunto do País mas governado por régulos de entre os que haveria que salientar os das Primórias, nome que se lhe dava naquela altura às comarcas do actual oriente asturiano e que levaram a iniciativa na posterior unificação de toda a Galiza. Da territorialidade da Galiza suevo-visigótica, só a região conimbriguense fez parte da Spânia (ou Al-Ândalus) para posteriormente ser recuperada e volta a perder por várias vezes por e para a Galiza.


·         O nome do “Reino de Astúrias” ou “Reino de Leão” não é o que está recolhido nos documentos andalusis, carolíngios, papais, germânicos, anglo-saxónicos, bizantinos e escandinavos. O nome que figura neles é o de “Reino de Galiza” ou mais justamente em latim “Gallaeciense Regnum” (às vezes “Christianorum Regnum”). Dentro dos textos peninsulares, só uns poucos safaram da manipulação posterior do século XIII e posteriores. Os outros, redigidos muito posteriormente aos eventos que narram (7) não são fiáveis.

·         Os conceitos de “Reconquista” e “Repovoação” não são interpretados igualmente pela historiografia galega e a castelhana. Para a castelhana é a recuperação do território nacional perdido por conquista e invasão muçulmana, mas para a historiografia galega nunca existiu um programa consciente durante a Idade Média de ocupação da Espanha muçulmana, nem um processo cronológico continuado de conquista. Desde a reunificação da Galiza após a entrada muçulmana até o século XI não houve variações importantes de limites territoriais. Contrariamente houve variações desde a anexação de Toledo, momento desde o que começa realmente o avanço cristão desde o Norte. Por outra parte “Repovoar” é interpretado para o castelhanismo como “tornar a povoar o que antes estava vazio ou povoado com outras pessoas alheias dum ponto de visto étnico e que houve de expulsar para manter a uniformidade nacional”. No entanto, segundo a versão galega a palavra “Repovoar” vem do latim originário REPOPULARE que vem sendo tornar a organizar um território, não do ponto de vista demográfico mas do administrativo e do político.


·         Segundo o paradigma galego, o Reino de Galiza foi o protagonista da maior parte da Idade Média e o projecto de unificação peninsular. Castela surgiu quando esse projecto já estava encaminhado fazendo-se com ele e manipulando a historiografia. Para Castela, a Galiza simplesmente não existe, nem antes nem depois. Durante o Século XIII em adiante se vai levar a cabo por meio de determinadas pessoas com nomes e apelidos a eliminação do nome da Galiza dos documentos e o processo histórico leva a eventos que consolidam Castela como a construtora da actual Espanha (8). A separação de Portugal, a castelhanização de Leão e a união de Castela com Aragão fecham o processo.

·         Os chamados “Séculos Obscuros” enquadrados dentro da Idade Moderna para o nosso paradigma não são tão obscuros. Na Galiza houve vida política embora dependente e com vontade de recuperação em alguns casos. O maior e mais importante episódio desta época é o seu final, quer dizer, a guerra contra os franceses no que a Galiza de facto agiu com total independência, com o seu governo, o seu exército, a sua política fiscal e diplomática e de facto quem conseguiu com ajuda do exército aliado britânico a expulsão dos franceses da Espanha e a derrota de Napoleão. O nosso País foi o primeiro da Europa em ficar livre de franceses. Infelizmente a ideia de fidelidade a um Rei fez com que essa independência de facto fosse cedida a uma monarquia quem poucos anos depois (em 1833) eliminaria o “Reino da Galiza” da cartografia, da legalidade, da diplomática e da nomenclatura para criar quatro províncias sem mais conexão entre elas do que pudesse haver com outras do novo “Reino da Espanha”.


No que diz respeito da língua, o paradigma galeguista sempre defendeu a unidade linguística galego-portuguesa e a necessidade da unificação e confluência entre as falas galegas e as portuguesas. Há hoje um galeguismo que isso não aceita, mas é o “galeguismo” oficial e dependente chefiado pela mesma ideia que gere o paradigma castelhanista. A origem da nossa língua está naquele “Gallaeciense Regnum” medieval que se quer negar desde Castela e ainda naquele “Galaico” ou “Proto-Galaico” do século X do que nos falam Carvalho Calero ou Rodrigues Lapa está mesmo a origem do castelhano que não é mais do que uma variante oriental extrema do Asturo-leonês ou galaico-oriental em contacto com o substrato basconço. O galego-português é a variante que os nossos vultos denominam como galaico-ocidental. O famoso “Mio Cid” não está redigido originalmente em castelhano medieval porque este não existia, mas em navarro-aragonês como nos dizem mesmo prestigiosos autores espanhóis como Rafael Lapesa ou Alonso Zamora Vicente. As chamadas “glosas emilianenses” e “glosas silenses” origem do castelhano segundo nos contam na escola, no liceu e na universidade não estão em castelhano, mas em navarro-aragonês. O castelhano é uma língua que se elabora a partir das falas de contacto entre o galaico-oriental (ou astur-leonês), o basco e o navarro-aragonês que era uma fala emparentada com o gascão e o catalão. No tema da língua o supremacismo castelhano e castelhanista agiu do mesmo jeito: destruindo documentação, manipulando informação e reduzindo o protagonismo da Galiza e do galego(-português).







Referências:
  (4) Portanto os galegos de hoje não seriam mais do que descendentes de asturianos medievais.
 (5) No filme “El Cid” protagonizado por Charlton Heston o Fernando I e posteriormente Afonso VI são Reis de “Castela, Leão e Astúrias”. A palavra Galiza não aparece por nenhures e Leão e Astúrias que faziam parte do mesmo território político na altura são consideradas como dous Reinos diferentes. Nesse mesmo filme aparecem dous dos três filhos varões do Rei Fernando: Sancho e Afonso. O terceiro filho, Garcia, que levou em herança as actuais Galiza com Portugal mais as taifas de Badalhouce e Sevilha não apareceu em todo o filme nem se nomeou.
(6) De penúrias, fomes, e falências o qual leva aos galegos à incultura e à ignorância muito salientada pelos clássicos castelhanos desses séculos chamados de “Séculos de Ouro” em contraposição aos “Séculos Obscuros” galegos.
  
(7)  Segundo Anselmo López Carreira, autor do livro “O Reino Medieval de Galicia” editado por “A Nosa Terra” em 2005 diz-nos nas páginas 131-133 que autores como Barrau-Dihigo consideram fiáveis muito poucos documentos da época chamada asturiana (711-910). De 68 diplomas, só 19 são autênticos “ou le paraissent”, dos quais só 5 são originais, os outros 14 parecendo fiáveis chegaram até os nossos dias em cópias antigas ou modernas, portanto susceptíveis de serem alterados. O professor Floriano, sendo considerado menos crítico considera 5 documentos autênticos de 15 estudados desde 711 ate o ano 799; de 800 até 866 recolheu 69 dos quais só lhe pareceriam autênticos 44, de 867 até 910 estudou 120 dos quais só 92 seriam autênticos. Posteriormente o Professor Floriano num segundo estudo chega a considerar que só 7 originais nos chegam do período astur depois de afirmar que “no llegan a medio centenar los conservados”. Diz-nos também o Professor Carreira que dos investigados por ele e dos 313 documentos apanhados da Catedral de Compostela, só 12 se transmitiram independentemente dalgum cartulário e menos do 2% são originais. As crónicas não saem melhor qualificadas. O seu aproveitamento só é aceitável após uma grande poda. Inclusivamente as bases historiográficas nas que se baseia o castelhanismo como são as “Crónicas Asturianas” e  chamada “Crónica de Afonso III” questionam o denominado “Reino Astur” e o seu valor fica relativizado pela intencionalidade política com a que foram redigidas. O seu fim era legitimar a autoridade monárquica exercida desde Ovedo. Mesmo o episódio de Covadonga só se pode interpretar em chave mítica.
(8) O Bispo Pelayo de Ovedo, Rodrigo Ximénez de Rada e Lucas de Tui foram os que levaram a cabo durante o século XIII o movimento de eliminação da palavra “Galiza” dos documentos, refazendo-os, manipulando-os, destruindo-os, etc… A razão era o privilegiar Toledo como cidade principal tanto do ponto de vista religioso como político em detrimento de Compostela e ainda fortalecer o poder castelhano na península e debilitar o projecto nacional pan-peninsular galaico

A mudança de paradigma e a recuperação da memória histórica na Galiza. 1ª Parte






Por José Manuel Barbosa


0- A importância da História para as nações


Imaginemos um caçador paleolítico a seguir umas pegadas dum veado. Ele sabe que num tempo passado mais ou menos distante ou próximo que por aquele lugar transitou um animal. Pelo conhecimento das pegadas, o nosso caçador pode reconhecer o tipo de animal e as condições nas que ele está para poder ser caçado. A inteligência do nosso homem junto com a sua experiência passada e a trabalhada técnica de caça fazem com que continue o rasto e consiga dar com a peça para poder dar-lhe captura e poder assim alimentar à sua família que teria assegurada a sobrevivência durante uma boa temporada.

O caçador soube pelos restos dum passado manifestado numas pegadas que havia uma peça de caça e pôde completar o seu labor.



Isto não aconteceria se o caçador fosse um leão, um crocodilo ou qualquer outro depredador. Eles só responderiam ao estímulo de verem ou cheirarem à presa, nunca por terem conhecimento dum passado reconhecido por uns sinais ou marcas no chão a partir dos quais reconstruírem uma realidade com a qual pudessem prever um futuro provisor. Eis a importância do conhecimento do passado, sempre por meio dos restos que deixa e que são interpretados no presente para nos ajudarem a garantir o nosso futuro.



Também o conhecimento do passado para os povos é uma necessidade para a sua sobrevivência do mesmo jeito que é para o nosso caçador paleolítico ou para qualquer de nós individualmente. Podemos dar algumas provas: o tratado de Nanquim de 1842 foi de utilidade para a China para poder reivindicar com total legitimidade a devolução do Hong-Kong por parte do Reino Unido; o tratado de Utreque serve de utilidade para o próprio Reino Unido não ter de ver qualquer legitimidade por parte da Espanha na sua reivindicação de Gibraltar ou o a legislação saída do Congresso de Viena faz reconhecer que Olivença legalmente é Portugal embora não seja de facto.



01 – Compreender o presente

O conhecimento do passado nos ajuda a compreender o presente e isto permite mexer-nos no mundo no que estamos de forma prática, útil e de forma que o conjunto funcione sob critérios de saúde social que favorecem a estabilidade, a paz e a harmonia do grupo e com outros grupos.

Essa compreensão do presente nos leva a tolerância por conhecimento da dinâmica social. Assim poderemos compreender as razões que levaram a exercer a moral vitoriana e compreenderemos igualmente a falta de pudor dum ameríndio da Amazónia ou um nativo da polinésia e ver o absurdo da imposição do primeiro sobre os segundos.



Teremos uma ideia clara de porque a Generalitat de Catalunha é uma instituição ao serviço da liberdade do seu país mas poderemos reconhecer como a instituição da Junta da Galiza (Xunta de Galicia) tem conotações que derivam duma ideia de dependência e anti-autonomismo na Galiza (por isso a razão do “Conselho da Galiza” presidido por Castelão no exílio…).




Haveremos de compreender porque o Samhain, o Halloween e o Magusto têm a mesma origem e as mesmas feições básicas mas nem são exactamente o mesmo, nem nos corresponde aos galegos a identificação com o Samhain por muito que se lhe queira dar Bilhete de Identidade galego. O nosso é o Magusto com castanhas, bruxas, mortos que saem do Além, cabaças, etc… e não por isso é menos céltico. É igualmente céltico e ainda é a expressão da nossa celticidade galaica.



Poderemos perceber porque na Andaluzia existe o tratamento de “desrespeito cordial” insultando às mães dos amigos com um bom afã de “colegueo”(1) enquanto essa prática na Galiza ou em Portugal seja impensável por ofensiva.



Haveremos de perceber porque nas construções galegas há soportais e no entanto não há em Castela ou no Andaluzia…



02 – O conhecimento do passado nos orienta de cara o futuro

É este um ponto importante e de grande utilidade. O conhecimento do passado ajuda a assegurar a sobrevivência do grupo e não só a individual. O exemplo mais próximo que temos é o pensamento e sobre tudo a prática reintegracionista surgida na Galiza nos últimos trinta anos. A ideia de as falas galegas fazerem parte dum conjunto linguístico mais amplo conhecido internacionalmente com o nome de “português” leva a implementar para as falas galegas medidas que não só garantiriam a sobrevivência das falas galegas mas mesmo ajudariam a ver a Galiza como elemento importantíssimo da chamada lusofonia gerando uma mudança nas consciências dos galegos e das galegas que passariam dum conceito duma Galiza regional e periférica a uma Galiza central e importadora de modelos a seguir por uma civilizaçom que visa atingir num futuro próximo níveis de importância e de influência internacionais de carácter político, social, moral, económico, cultural e linguístico que a dia de hoje possui o mundo anglófono.



03 – O conhecimento do passado favorece o relacionamento com outros grupos humanos (próximos no tempo e/ou no espaço).

É fácil pensar como a Galiza pode se relacionar fluidamente com as nações atlânticas europeias pela sua proximidade física e pelos seus vínculos étnicos mas também é fácil pensar que embora não haja a mesma distância física ou genética, o relacionamento com os países africanos como Moçambique ou Cabo Verde ou outras mais longínquas como o Timor são viáveis e possíveis por termos uma língua comum. Esse pensamento vem dado pelo nosso conhecimento do passado e pela compreensão do presente.



04 – O conhecimento do passado tem um forte componente anto-identificativo

Os povos não existem sem memória e é essa a razão pela qual os Estados investem muito dinheiro no ensino do seu passado nacional e nos seus planos de estudo assim como para a sua construção nacional do mesmo jeito que conhecem perfeitamente com quais outros países se devem relacionar para defenderem os seus interesses.




1– Que História se ensina no Reino da Espanha

1.1 – O paradigma da historiografia castelhanista

Primeiramente temos que dizer que por Paradigma entendemos o sistema ou modelo conceptual que orienta o desenvolvimento posterior das pesquisas, estando na base da evolução científica. Se o paradigma está errado, tudo o que se construa a partir dele também vai estar errado e dentro da historiografia peninsular é base conceptual a ideologia castelhanista, quer dizer, o pensamento nacionalitário centrado em Castela a partir da qual se exprime e exemplifica todo o anterior e todo o posterior. Castela é o centro e nem só geográfico da península pelo qual também se exprime a periferia também não só geográfica.



Para o paradigma castelhanista há uma série de dogmas irrenunciáveis que exprimem o que é a península, e são os seguintes:

Espanha é Hispânia

Durante a Idade Média se foi construindo um jogo de hegemonias que tinham por finalidade o domínio e controlo da península. Houve a tentativa muçulmana e a tentativa cristã. Esta última começou sendo um projeto galaico mas após o século XIII, Castela começa a apanhar poder e visa unificar a Hispânia sob projeto linguístico e nacionalitário castelhano. Como elemento estratégico, o nome de Castela ou Grande Castela pareceria pouco acaído, pelo qual a adopção de “Espanha” como herdeira da “Hispânia” pode parecer mais inteligente e mais viável para conseguir adesões e evitar resistências. É por isso pelo que o nome de Espanha foi o nome desse projeto que tentava, e tenta, como indica o seu nome, a unificação da península, de toda a península, mas sobre chefia castelhana. Esta dirigência de Castela nunca teve vontade de partilhar poder com as outras nações hespéricas. Quis, em troca, impor e dominar sobre elas, eliminando-as ou reduzindo-as a regiões satélites ou mesmo absorvendo-as.



Portugal é um erro histórico

Na península houve desde tempos antigos vários polos ou centros etno-linguísticos e/ou nacionalitário-culturais. São estes:

1)      Um polo mediterrânico ou ibérico que se pode corresponder com os Países Catalães (Catalunha, Valência, Baleares) e mesmo Aragão e Múrcia.

2)      Um polo Sul ou Tartéssico que se corresponderia com a actual Andaluzia

3)      Um polo Nortenho-Pirenáico que se corresponderia com o povo vascão e o actual País Basco

4)      Um polo Atlântico ou Galaico-Lusitano que viria corresponder com a velha Gallaecia (actual Galiza, Astúrias e Leão mais o Norte de actual Portugal) e a Lusitânia (Portugal do Douro para Sul e aproximadamente a actual Estremadura espanhola)

5)      O Centro peninsular mesetenho.

Todos esses povos em maior ou menor medida caíram posteriormente, da Idade Média até hoje na órbita de Castela e todos foram mais um menos castelhanizados. Uns mais (Aragão, Múrcia, Andaluzia, Leão, Estremadura e Astúrias) e outros menos (Catalunha, Valência, Baleares, País Basco e Galiza). Mas de todos eles houve um território que ofereceu uma grande resistência apesar de ficar incluído dentro da Monarquia Hispânica durante um tempo, e esse foi o Reino de Portugal.

Castela não conseguiu a sua anexação e ainda menos a sua assimilação. É por isso porque o domínio castelhano da península não é total e graças a ele outros territórios podem pensar em se livrar dessa hegemonia mesetenha ao saber que isso é possível.

Portugal é portanto para o castelhanismo um erro histórico, um fracasso, e na narração oficial dos factos históricos apresenta-se sempre como algo que quase nem existe no melhor dos casos ou algo que há que desprezar no pior, mas que sempre apareceu nos mapas do domínio castelhano da península como algo estranho que nem era Espanha nem deixava de sê-lo.





Para o castelhanismo historiográfico Espanha é uma criação de Castela


Para o castelhanismo, a Espanha é uma criação de Castela e do seu génio, não deixando outra possibilidade. A partir daí as outras regiões ou são apêndices da própria Castela ou aderiram o projeto castelhano.

Andaluzia, foi conquistada aos muçulmanos, mas foi definida em palavras do hispanista e presidente da “Real Academia Española” Pedro Laín Entralgo de “Castela-a-novíssima”. Assim diz no seu livro “A que llamamos España”(2) tendo em conta que o velho Reino de Toledo foi desde muito tempo atrás “Castela-a-nova” ou a dia de hoje segundo a nomenclatura “autonômica” Castela-a-Mancha. Se a Mancha seria “a nova”, Andaluzia seria “a novíssima”. Etnocentrísmo sem qualquer dúvida.

Astúrias e Leão foram as origens do projeto unificador peninsular esquecendo que se correspondem com a Gallaecia asturicense, atlântica, céltica e sueva. A dia de hoje Astúrias está separada de Leão e da actual Galiza e é uma região que nada tem a ver com a Espanha taurina, flamenca e castelhana que se vende no exterior como ícone. Astúrias é muito próxima em cultura, estética e sentir à Galiza, embora o sentimento asturianista cresça como oposição ao galaico, construindo-se a partir dum anti-galeguismo contrário à história, absurdo e inútil que obstrui tanto o desenvolvimento identitário tanto asturiano como o galego.

A região de Leão, Sul da Gallaecia asturicense simplesmente foi absorvida por Castela numa região autónoma comum denominada Castela-Leão mas onde os leoneses são identificados e nomeados facilmente pelo resto dos espanhóis de castelhanos. Muitos leonesistas se opõem a isto, mas o achegamento a Astúrias não se sente como necessário e muito menos o achegamento à Galiza.

As regiões mediterrânicas de Aragão e Valência são também territórios em grande parte castelhanizados e desenvolvidos num anti-catalanismo forte e visceral, já que Catalunha é o único território espanhol que é capaz de fazer frente ao castelhanismo com um sentimento e uma praxe eficaz que poderia derivar numa ruptura que faria fracassar pela segunda vez (a primeira foi Portugal) a ideia da Hispânia castelhana e unitária.

Por outra parte o País Basco cuja parte mais ocidental deu origem à primitiva Castela é um país de fortes contrastes. Por um lado onde a resistência anti-castelhanista e anti-espanholista é mais forte incluso dum ponto de vista físico mas por outra onde o castelhanismo ou espanholismo tem apoios mais extremos, de tal jeito que poderiam chegar a inviabilizar o projeto nacional basco fora do contexto espanhol.

Finalmente o caso galego é um caso muito especial, com avanço importante do projeto nacional castelhano mas também com mais possibilidades de futuro se este depender da consciencialização a partir do seu passado anti-castelhano. A Galiza em potência é um autêntico perigo para o castelhanismo porque ela partilha língua e cultura com Portugal, o grande insucesso de Castela. Galiza foi historicamente quem criou o projeto unionista não castelhano e de unificação hispânica em épocas medievais e quem a dia de hoje pode olhar para Portugal e o mundo lusófono como via de saída para evitar a sua castelhanização completa e forçosa e a consequente desgaleguização.

Como vemos, a hegemonia castelhana chega a quase todos os pontos da península e isso é traduzido numa forma de contar os factos passados, isto é, a história da península e de descrever as origens das diferentes culturas e línguas da Hespéria. Esse poder faz pensar a esse castelhanismo que ele tem direito para impor a sua forma de perceber a realidade e sente que deve ser obriga de todos os povos hespéricos seguirem os mesmos objectivos e verem-se satisfeitos com os mesmos interesses, forem estes povos atlânticos ou mediterrânicos; forem estes nortenhos e verdes com as conseguintes implicações económico-sociais ou sulistas e quase desérticos; forem estes mesetenhos ou montanhosos… e o mérito é todo, sempre de Castela que foi a que se diz criadora e construtora da Espanha.



Espanha surge com Roma e os Visigodos


Como Castela tem de justificar o seu protagonismo e tem de possuir razões para cumprir com o seu destino unificador, deve haver uma realidade anterior que legitime, explique, fundamente e prove que as cousas são como ela diz que são.

A unidade da península deve ter uma origem e uma razão e esta vai estar baseada em unidades anteriores. A Espanha castelhana surge em Covadonga (Astúrias) , onde um pequeno e valoroso grupo de rebeldes cristãos luta numa batalha contra os invasores muçulmanos que curiosamente também queriam unificar a península. Os, já, “espanhóis” de Covadonga, uma vez consolidados com um poder político alternativo ao cordovês botam mão dum ideologema -o “goticismo”- que lhes dá uma razão para lutar contra os ilegítimos ocupantes muçulmanos da península até despejá-los da mesma e recuperarem o reino visigodo tal qual era anteriormente do ponto de vista territorial.

A cousa não acaba de ficar assim, porque anteriormente aos visigodos a Hispânia já estava unificada sob domínio romano de forma que a península deveria estar unida porque assim o esteve sempre. O pensamento castelhanista quereria conseguir manter e preservar essa unidade e banir do jogo político qualquer derivação que atentasse contra esse ideal de unidade o qual seria um erro grave ou mesmo um pecado. Para isso estava destinada Castela.




Os conceitos de Reconquista e Repovoação

A ideia paradigmática que dá o castelhanismo para “reconquistar” Espanha é por meio do avanço cristão sobre o território muçulmano limpando de islamitas as regiões ocupadas e repovoando-as com gente procedente do Norte. Esse jeito de limpeza étnica levaria à “união de todos os espanhóis” e sempre Castela a protagonista do projeto.

Reconquista é porque nunca foi legítima a entrada e ocupação da península por parte do islão e porque ainda havia a obriga moral e mesmo religiosa de recuperar, daí o termo, os territórios hispânicos anteriormente visigodos e cristãos. A Reconquista obrigava à expulsão dos invasores e a repovoação com cristãos ou como mal menor a reconversão de elementos islâmicos ao cristianismo.



A Galiza nem existe nem tem importância nenhuma.

Em todo este avatar histórico a Galiza não é nada, quase nem existe nem tem a menor importância nem protagonismo para a construção da futura Espanha. Desde o 711 em adiante quase de forma repentina a Galiza deixa de ser o país que ocupa as actuais terras nortenhas de Portugal, Astúrias e Leão para passar a ser uma triste regiãozinha cujos limites já são os que conhecemos hoje, que se vê ocupada pelos muçulmanos e que há que repovoar novamente com elementos humanos que se supõe provenientes irremediavelmente das Astúrias. Ovedo já não é Galiza, Leão é um reino desde o 910 quando esta cidade se passa a ser o lugar da Corte (3) e Portugal era Galiza “ma non tropo”.



1.2 Qual é a metodologia para ensinar a História de Espanha

A História que se estuda no ensino primário, secundário e universitário na Espanha atende a programas elaborados até certo ponto pelo Ministério de Educação mas em boa parte pelas Conselharias de Educação das Comunidades Autónomas. Aquelas Comunidades Autónomas com competências em educação, que a dia de hoje são todas, elaboram um temário com matéria relacionada com a Comunidade Autónoma correspondente mas exceptuando Catalunha e o País Basco que aplicam um paradigma diferente do castelhanista todas as outras seguem fielmente os ditados do arquétipo centralista. Foi por isso pelo qual estas duas Comunidades Autónomas tiveram problemas nos média durante os anos 90: por, segundo os média, manipularem a história de Espanha e inventarem umas histórias do País Basco ou de Catalunha que não se ajustavam ao passado real.

A Galiza teve problemas ultimamente (nomeadamente durante o governo do bipartido PSOE-BNG) embora os autores que defendiam o que chamaremos mais adiante “paradigma galeguista” já tivessem publicado as suas bibliografias anteriormente. O ataque foi mais do que nada político. Embora isto seja assim, os programas de estudo seguem uma história da Galiza bastante pouco séria do ponto de vista científico, que não atende às fontes documentais e que aprofunda pouco no passado do País partindo dos conceitos inamovíveis do padrão elaborado por Castela.

A metodologia no que diz respeito à história que se estuda no Reino da Espanha está baseada em dous pontos fundamentais:

a- A filosofia arquetípica castelhanista da qual vimos falando e que será tanto mais extremista na medida na que o regime ou o partido do governo em Madrid tiver menor vocação democrática. Filosofia, esta, que na prática é indiscutível, inamovível, falsamente científica e dogmática. Conhecemos casos de perseguição e acosso laboral de pessoas vinculadas à Universidade até o ponto de perderem o seu trabalho e a sua saúde por defenderem posicionamentos científicos discrepantes com a filosofia oficial, mesmo em época democrática (estou a falar dos anos 90 do século XX) e protagonizadas em alguns casos por professores ou professoras que nada teriam a ver com posicionamentos políticos galeguistas. Simplesmente por honradez e honestidade científica.



b- O presentismo cartográfico e de hábitos que nos faz entrar pelos olhos configurações territoriais e usos próprios do tempo presente aplicadas a épocas históricas nas que não se correspondiam as realidades em questão.



Notas
(1) Estou-me a referir à expressão “Hijo de Puta” dirigida a um amigo. Com isso se leva a cabo o “colegueo” que é uma palavra castelhana que vem de “colega” que significa “companheiro, amigo… Com esta expressão exprime-se a acção de fazer e/ou desfrutar duma boa amizade com alguém.
(2)  Lain Entralgo, Pedro: A que llamamos España. Circulo de lectores. Barcelona. 1994. Página 48.
(3) Casualmente para o castelhanismo o Reino de Leão também é identificativamente um Reino diferente do que o Reino de Astúrias. Curioso caso no que o nome do país muda segundo muda a capital do mesmo… ou quiçá por serem Reinos diferentes sejam também mundos diferente que não têm a ver uns com os outros. É curioso como ainda hoje no Principado de Astúrias consideram “Reis de Astúrias” todos os monarcas entre 711 e 910 quando a Corte se passou para a cidade de Leão. Não cabe na cabeça de ninguém que esse “Reino de Leão” desde Ordonho II em 910 possa ser o mesmo Reino do que surgiu em Covadonga ainda com capital diferente. Ao passar o Cordal Cantábrico já não é “Reino de Astúrias” mas de Leão porque dum ponto de vista presentista hoje Leão não é Astúrias.

O que a verdade esconde. 1º parte.

Por José Manuel Barbosa


Desde que Camilo Nogueira em 1996 começasse uma série de trabalhos relativos à recuperação da memória coletiva da Galiza culminados com o seu livro “A memória da nación. O Reino da Gallaecia” em 2001 e posteriormente os importantíssimos trabalhos de Anselmo Lopez Carreira  com “O reino medieval de Galicia” em 2005, Xosé António Lopez Teixeira “Arredor da conformación do reino de Galicia (711-910)” e Xoán Bernardez Vilar entre outros, fazem manifesta a existência duma visão galega da História da Península com toda claridade.


Com os textos dos nossos historiadores podemos demonstrar o protagonismo do nosso País durante toda a etapa medieval e ainda reconhecer um silenciamento intencionado do nome da Galiza assim como a usurpação intencionada de factos, personagens, iniciativas, eventos e demais elementos históricos e historiográficos em benefício de Castela ou dum conceito muito exclusivista do hispânico e da Hispânia, sempre castelhana.

Centrando-nos muito concretamente na Idade Media, há do meu ponto de vista alguns elementos a comentar que quereria salientar para ajudar a botar abaixo certos conceitos e mitos que em nada se ajustam à realidade histórica e por isso em nada beneficiam à ideia duma Galiza existente na História da Hespéria.

A Littera visigothica.

Testamento de Múnio Ramiz. Mosteiro de São Pedro de Valverde. Monforte de Lemos (Galiza). Ano de 1115

Aqui há um elemento no que a Galiza tem algo a dizer. É este um tipo de grafia medieval que ocupa os documentos dos séculos da Alta Idade Média. Também é chamada “littera toletana” ou “littera moçarábiga” ainda que todos os autores que estudam a ciência paleográfica concordem unanimemente em que nenhum desses nomes é correto.

O nome de “visigothica” não é correto, porque segundo eles as manifestações deste tipo de letra se dão no seu máximo esplendor após a chegada dos muçulmanos à Península, quando já o Reino Visigodo estava morto.

O nome de “moçarábiga” também não é correto porque não foi entre os moçárabes cristãos andalusis onde nasceu nem onde se desenvolveu com maior personalidade, sendo este povo utente de várias línguas romances particulares que se dão em chamar de “moçárabes” grafadas com ortografia árabe. Quer dizer é o chamado “aljamiado” ou língua romance escrita com grafia árabe. Havia textos em latim mas estes eram escritos com grafia latina versão “visigothica” embora com certas particularidades dependentes nas formas quer do norte cristão quer do mundo muçulmano no que viviam inseridos.

Texto em aragonês aljamiado. Livro de Iusuf

Outro nome que se lhe tentou dar a este tipo de letra foi o de “littera toletana”. O nome não teve muito sucesso como também não teve sucesso o denominá-la “littera hispânica”

Como vemos, esses nomes para este tipo de letra não atendem a uma realidade originária visigótica, nem a uma realidade de uso, como também não é moçarábiga nem toledana, onde não nasceu nem onde foi comum o seu uso, nem se cinge única e exclusivamente ao mundo hispânico, já que como uso gráfico foi partilhado por certas regiões da França mediterrânea, nomeadamente a Septimánia.

No entanto, parece ser que o exemplar mais antigo conservado deste tipo de escritura é a inscrição dotal de São Pedro de Rochas, cenóbio próximo à cidade galega de Ourense. O texto está datado no ano 611 segundo a cronologia da Era Hispânica, quer dizer, trinta e oito anos menos se o ajustamos ao cômputo pelo que nos regimos na atualidade que corresponderia ao 573 da nossa Era. Faltavam ainda doze anos para que a Galiza caísse nas mãos conquistadoras do Rei Leovigildo dos visigodos e parece, pelo texto, que era hábito usar este tipo de estética gráfica desde havia muito tempo.

 Inscrição dotal do Mosteiro de São Pedro de Rochas de 573
Quiçá o nome mais adequado para este tipo de grafia fosse “littera gallaeca” ou “littera suévica”?

Reparemos em mais pormenores:

Vejamos a feição das letras desta escritura «visigóthica» (ou melhor galaica ou suévica) e reparemos na letra Z. 

A sua configuração é uma evolução da dseta grega z. Esta daria origem com o tempo a conhecida letra que denominados cedilha ou zedilha cujo nome é um diminutivo de “zeda” ou “zeta”.




Na passagem da letra mal chamada visigoda para a carolina -nova grafia usada a partir dos séculos XII e XIII em adiante-, o Z com viseira acrescentaria ou hipertrofiaria esta até parecer um C com uma pequena virgulinha. Essa letra seria muito sucedida e de muito uso nas línguas da península ibérica e mesmo no ocitano e no francês (langue d’oil). Pensamos que ao Ç podemos atribuir-lhe uma origem galego-portuguesa por ser esta a primeira língua culta da Hespéria mesmo antes de que o castelhano fosse de uso comum, o qual segundo autores como Rodrigues Lapa, Eugênio Cosériu ou Carvalho Calero não deixaria de ser uma variante local estremeira do galaico oriental ou astur-leonês em contato com falares e substrato basconço do oriente burgalês. A primitiva Castela.

O uso do zedilha ou cedilha acabou estendendo-se por todas as línguas da península e mesmo pelas línguas da antiga Gaula ou Gália, e ainda por outras mais longínquas como o albanês, turco, romeno, letão,etc…

É curioso como uma das grandes críticas que o isolacionismo linguístico galego faz do uso do NH e do LH é que estes dígrafos são estrangeiros, procedentes do ocitano. Não se diz que também o é o CH e no entanto não se discute o seu uso em galego (porque também se usa no castelhano!!!) mas a origem do Ç é galaica exportada a outras línguas. Não vi ainda nenhum isolacionista defender o seu uso para a língua dos galegos.

Também é curioso que após o uso continuado desta grafia (Ç) em castelhano até 1726, fosse deixada de usar nos textos galegos quando a R.A.E. (Real Academia Espanhola) publica no seu “Diccionario de Autoridades” a norma pela qual é substituída  pelo Z. Ainda assim alguns autores, como a própria Rosália de Castro utilizam o Ç nos seus textos levada pela lúcida intuição da nossa poeta nacional por excelência. Infelizmente o seguidismo gráfico está presente hoje mais do que nunca.

Y ó fin soya quedei, pero tan soya
Qu’hoxe, d’a ,mosca inquieto revoar,
D’o ratiño o roer terco e constante,
E d’o lume o chis chas,
Cando d’a verde pónla
O fresco sugo devorando vai,
Parece que me falan, qu’os entendo,
Que compaña me fan;
Y este meu coraçon lles di tembrando
¡Por Dios!…¡non vos vayás!
Que doce, mais que triste
Tamén é a soledad!

Rosália de Castro. Folhas Novas



O assunto das grafias tem especial importância, já que nos descobre a usurpação da origem dum elemento no que na historiografia oficial nada se diz nem nada nos faz pensar que seja galego ao ser denominada comumente de «visigothico».


Como isso há mais cousas nas que incidiremos.


                                                                                   
                                                                                                            Continuará…… 

Crónica duma negligência.


Por Carolina Horstmann

Faz poucos dias chegou a minha caixa dos correios, uma curiosa ligação da UNESCO. Algum visionário contato da minha lista de amigos, teve a brilhante ideia de partilhar e enviar este interessante espaço. Tratava-se da Biblioteca Digital –em formato multilíngue- que expõe material mundial de jeito gratuito onde podermos achar mapas, manuscritos de diversa antiguidade e uma grande variedade de elementos curiosos ao olho de qualquer pesquisador.

Depois da primeira impressão, duma nascente sensação de agrado perante tão cuidada plataforma digital é quando começo a me lembrar das tarefas pendentes que tem a UNESCO, como herdeira dum importante pacto de nações com a humanidade.  Franziu-me a sobrancelha automaticamente e a minha mente não deixou passar revista à crescente listagem dos “deve” que esta entidade tem com o património cultural mundial.

No transcurso da nossa história, os conflitos armados trouxeram-nos  como consequencia imediata, não só a perda de vidas humanas, mas também, uma grande devastação dum ponto de vista cultural. Admitia-se como botim  de guerra válido a apropriação dos bens culturais do inimigo e a destruição de aqueles  que não podiam ser transladados. Uma simples consequencia da guerra. Algo inevitável.

Entre os anos de 1815 e 1863 começamos a ver as primeiras tentativas de intenção real por proteger estes bens, com o Congresso de Viena e a posterior assinatura do Código Lieber em 1863, no qual se estabelecia “o dever de proteger as obras de arte, coleções científicas, bibliotecas e hospitais de qualquer dano”. Imediatamente depois, em 1935, com a assinatura do Pacto Roerich é quando vemos a iniciativa real e consistente para o cuidado destes bens, procurando a sua proteção tanto em tempos de paz como em tempos de conflito armado.

Nicolai Roerich

O Pacto Roerich e a bandeira da Paz
O Pacto foi ideado por Nicolai Roerich, artista russo e autor de mais de 7000 quadros, filósofo, escritor e arqueólogo, quem plantejava constantemente nos seus artigos de imprensa, a importância da proteção dos monumentos face os efeitos destrutivos da Primeira Guerra Mundial, começando, já, naquela altura, a chamar a atenção das pessoas para protegerem a herança cultural do seu país.

Roerich cria um novo conceito de Cultura, por meio dos seus escritos de Ética viva e vai salientando uma diferença entre esta e a civilização, onde estipula que “enquanto a cultura se relaciona com o mundo espiritual do homem na sua autoexpressão criativa, a civilização não é mais do que a organização exterior da vida humana nos seus aspeitos materiais e civis. A confusão entre ambos os conceitos –sinala-, leva à pouca valorização do elemento espiritual no desenvolvimento da humanidade”.

É por isso, que em colaboração com George Chklaver, Doutor em Direito Internacional e Ciências Políticas da Universidade de Paris redigem o convénio sobre a proteção dos tesouros da cultura, que posteriormente há de ser conhecido como “O Pacto Roerich”. Assinado o 15 de Abril de 1935 em Washington, com a presença de representantes de vinte países de toda América.
Simbolo da Paz Proposto por Roerich



Esta nova visão da consciência selava-se com a aprovação do uso dum sinal específico, uma bandeira ideada para identificar os objetos ou lugares a serem protegidos: A chamada “Bandeira da Paz”. É uma bandeira branca que tem uma circunferência com três círculos de cor vermelho dentro de si. Tenta significar a totalidade da cultura e dentro –representado pelos pontos- a religião, a arte e a ciência. Descreve-se também como as relações da humanidade no passado, no presente e no futuro.


Há que sinalar o profundo significado humano que tem este símbolo arcano utilizado pelo Roerich, presente na arte e a expressão da humanidade desde tempos imemoriais, achando-se o mais antigo deles numas pedras de Mongólia, datadas há mais de 9.000 anos. Este símbolo é conhecido como “Chintamani” ou “Cintamani”, e pode ver-se em infinidade de obras a través da história; desde tapetes Otomanos até no brasão do Papa Pio XI.

Tapete Otomano e Brasão de Pio XI



Evolução da proteção dos bens culturais.?

Toda tentativa foi vã. Ainda com a Bandeira da Paz ganhando em conhecimento popular e ondeando em alguma instituição, a devastação da II Guerra Mundial foi muito grande. No término da guerra, a vontade dos homens e dos lideres dirigiu-se novamente em retomar as conversas, criando uma e outra vez Convénios e Reuniões várias através dos anos.

É em 1954 quando é retomado o Pacto Roerich como documento base para a redação do “Convénio Internacional da Haia sobre a proteção de valores culturais em caso de conflitos armados” destinando-se a Bandeira da Paz a proteger os objetos culturais de valor. Esse mesmo ano, em 16 de novembro passa-se esse convénio para mãos duma nova organização: a UNESCO:

Neste é que se compromete a resguardar e respeitar os bens das nações, entrando em vigor em 7 de agosto de 1956. Nele manifesta e reforça a ideia de utilização do convénio, o mesmo em tempos de paz como em tempos de guerra, resguardando-se primeiramente os objetos que têm valor artístico, histórico e arqueológico, os lugares que servem para salvaguardar elementos de valor e finalmente os centros monumentais. Até aí tudo bem.
O estranho começa com a mudança do agora chamado “Emblema dos Bens Culturais”, que não é necessário usá-lo em tempos de paz mas em tempos de guerra deve estar em lugar visível.

(Pergunto-me, qual o efeito no coletivo das pessoas a aparição dum símbolo que não têm visto nem conhecem)

Emblema de proteção geral e emblemas de proteção específica propostos pela UNESCO


As deficiências deste novo convénio são inúmeras. Na teoria estão resguardados os tesouros e o património cultural das nações, estando devidamente inscritos e pormenorizados. Portanto, se o governo que nos administra ou os nossos responsáveis culturais decidirem passar sobre o Castro galego da Lagosteira, por mais que lhes ponhamos autocolantes com o triplo emblema de proteção hão de arrasar igualmente o nosso património.

Outra das deficiências têm a ver com o desconhecimento dos Estados (e as suas forças armadas) sobre este pacto e o baixo número de Bens inscritos. Aliás, se não houver sanções claras às violações do convénio sobre destruição ou furto de obras de arte tudo fica em água de bacalhau. E o mais importante, quiçá: a nula necessidade de difusão em tempos de paz que os Estados têm. Inclusivamente os emblemas de proteção são difíceis de achar em internet.

Desde a promulgação até o dia de hoje, são incontáveis as listas de conflitos bélicos acontecidos. A destruição e os roubos (quer pela população, quer por encomenda) são maiores do que o retorno das peças ao seu lugar originário após finalizados os confrontos. Um exemplo claro foi o conflito da antiga Jugoslávia que sendo um dos países mais ativos e com maior número de bens inscritos para a sua proteção, perdeu quase o 70% dos mesmos e muitos dos seus tesouros devidamente “protegidos” ainda aguardam para ser devoltos à sua origem.

Temos portanto a UNESCO, que tira formosas páginas em internet mostrando-nos  um importante número de tesouros para ser partilhados pela humanidade mas politizada como qualquer Estado, onde só tem proteção quem a pede e ainda posteriormente entra num sistema de votação para ver se lha concedem ou não. O Estado que pede essa proteção está obrigado a manter-se atualizado no que diz respeito dos Convénios com o fim de levar conta das mudanças e poder estar ao dia quando se reclamar a proteção requerida.

Uma instituição como esta da que falamos, lenta e de baixa reação perante os acontecimentos deveria reconsiderar a sua praticidade. Para amostra chega com lembrarmos o acontecido na devastada Biblioteca de Bagdade em 2003, onde após de três roubos foi organizada uma expedição de expertos por parte da UNESCO  para valorizar os danos causados tanto na estrutura do edifício como de perdas causadas pelo bombardeamento. Ali só havia uma estrutura totalmente derruída  com uma perda de livros e manuscritos históricos comparável à destruição da Biblioteca de Alexandria há quase 2.000 anos. Informação sobre Mesopotámia, a Grécia de Alexandre o Grande, o Império muçulmano medieval entre outras cousas…. Tudo estragado. Perdeu-se aí, entre outras cousas, uma valiosa documentação que pormenorizava a História da Galiza em época da ocupação muçulmana. Informação muito importante para a historiografia Galega que poderia ver reconstruídos certos elementos historiográficos que hoje parecem obscuros para alguns e reafirmarem a ideia dum Reino Soberano e protagonista do acontecer peninsular na Idade Média.

Perante tanta imprecissão da UNESCO, porque não voltar ao símbolo arcano que está no profundo das nossas memórias e fazer acordar o afã de defesa do patrimonio e os bens culturais próprios em cada um de nós?. Porque não ir para além, incluindo-a no nosso imaginario vexilológico, utilizando-a também em tempos de paz? (tal e como acontece atualmente em diversas nações americanas).

Talvez fazê-las ondear em soutos e fragas. Pintá-las na língua antes de ser amputada das nossas memórias; ou instalá-la em mámoas e Montes Sagrados (como o Monte do Seixo ou o Monte Pindo), contra as máquinas e as eólicas. Fazer acordar a Paz-Ciência no coração dos seres humanos adormecidos desta Terra verde e cheia de História,, lembrando sempre que como disse Nicolai Roerich: “as ideias não morrem, dormitam às vezes, mas ao acordarem são ainda mais fortes do que eram antes do sonho”.




Webs Relacionadas:

O Celtismo na Galiza hoje



Por José Manuel Nunes Vilar

É possível que falar de celtismo na Galiza seja tabu ainda quando cada vez há mais autores de diferentes nacionalidades que reconhecem anossa identidade céltica. É mais, situam aqui a génese dos povos que o tempo deu em chamar celtas. Os poderes metropolitanos parecem favorecer uma endogamia universitária destinada a dotar de coerência o artifício político e cultural que é Espanha. Porque é que se fala de cultura ou civilização castreja e não de celtismo galaico?

Beatriz Díaz Santana, (*mar shampla), diz que na atualidade o celtismo goza duma escassa aceitação académica e que as suas teorias são consideradas fantásticas e cientificamente falas. Será mesmo que pretendem isolar mais ainda o povo galego, reduzi-lo a uma mera comunidade autónoma dependente da metrópole ao despossui-lo da sua memória? Lembremos que isto é o que se faz na língua com a ILG-RAG. Neste sentido é que se pretende apresentar o galego como um idioma minoritário, desligado da língua portuguesa quando esta última apenas é mais uma variedade que trunfou e se normalizou como fala de Estado. Contudo, as publicações daqueles paladins do “politicamente correto” segundo os poderes metropolitanos começa, aos poucos, a falar de culturas atlânticas e mesmo de influências dos povos celtas.

Mas a opinião dos investigadores que também passaram pelas ilhas e pela Armórica vai muito mais longe: a Galiza é o berço dos povos celtas. Trata-se da teoria da continuidade paleolítica sustida, entre outros, por investigadores de renome internacional como Mário Alinei, Francesco Benozzo e Bryan Sykes, fundamentada em pesquisas linguísticas, arqueológicas e genéticas. Tudo aponta ao nascimento da civilização protocéltica na área compata que formavam as ilhas britânicas ligadas ao continente durante o Paleolítico. Deste modo é que os monumentos megalíticos foram uma das primeiras manifestações culturais duma série de povos atlânticos que o percurso do tempo daria em chamar de celtas e onde as mais antigas, depois das armóricas, são as galegas.

Não parece haver nas terras galaicas indícios duma influência externa, mas ao contrário, um espargimento cultural como as ondas que gera a queda duma pedra num estanque e cujo epicentro foi o que os romanos chamariam de Gallaecia. Poder-se-ia, ainda que imprudentemente, duvidar das pesquisas arqueológicas e linguísticas, mas a combinação de ambos elementos reforçada pela genética não parece deixar lugar a dúvidas quanto a que a Galiza é a pátria original da civilização celta. É o que sustem o prestigioso geneticista inglês Bryan Sykes ao dizer que os celtas que chegaram às Ilhas Britânicas procediam da Galiza e ainda quando o Leabhar Ghabhála não é uma fonte histórica válida, mas um legado mitológico, a coincidência é espantosa.
  
Fartos estamos de ouvir em muitos congressos, aulas de universidade e seminários o eufemismo “castrejo” num desesperado intento de justificar o legado histórico galego desde um ponto de vista forçado e isolacionista. Vem a ser o mesmo que sustêm Françoise Le Roux e Christian J. Guyonvarc’h em “A sociedade celta” quanto a que se está a atalhar o estudo do antigo desde uma
perspetiva maioritariamente externa ao contexto próprio das velhas sociedades. Os apologistas da hispanidade tendem a obcecar-se com a obtenção de dados com a única vontade de conhecê-los, mas não de compreendê-los desde a cosmovisão que concede o método multidisciplinar. Limitam-se ao trabalho arqueológico e à interpretação estéril de qualquer achega linguística e antropológica.

Não se pode esperar entender nem o mais mínimo uma sociedade apenas pelo seu estudo material. A comunidades tradicionais são indivisíveis e, por enquanto, a sua análise é irreduzível a uma só disciplina. Todo nelas está estreitamente relacionado e emerge da religião como causa e fim. Tanto é
assim que a velha sociedade é produto do pensamento religioso, não da arbitrariedade. Daquela como pode ser que haja investigadoras que estudam o celtismo galaico desde o panteão latino?

Lembremos o exemplo do ídolo achado em Aquis Querquenis de Bande, na Baixa Lima, região de Ourense. Trata-se dum acampamento militar romano, mas sabido é o costume de recrutar indígenas como tropas auxiliares aos que se lhes concederia a cidadania romana caso sobreviverem aos 25 anos de serviço. Assim é que baixo da armadura romana seguiam sendo galaicos que conservavam os seus credos e que, por enquanto, se encomendavam às suas deidades.

Este ídolo achado em Aquis Querquernis é, sem dúvidas, Bandua e não por acaso. Na figura, além do seu capacete e as suas roupas claramente célticas, pode-se apreciar perfeitamente a corda que a lenda diz Bandua levava ao peito e, por outra parte, também pode ser significativo o topónimo local de Bande, mas os responsáveis do estudo arqueológico da zona etiquetaram a estatuínha com o nome de Marte, quando de romana só tem o feito de ser estátua -reparar em que os celtas não edificavam templos nem concebiam às deidades em forma de objeto- Se calhar negam-se a analisar de perto a possível relação existente com a toponímia e com a mitologia indígena. Também é possível que se achem seduzidos pela ideia de apresentar ao mundo os nossos manifestos culturais com os olhos da romanidade e não com os indígenas e próprios.



Por último, mas não menos importante, cumpre pensar no motivo pelo qual os isolacionistas históricos falam de castro. Que é o que faz com se fale de castrejos e não de celtas? Qual é o componente genuíno que impede outra nomenclatura? Não será o facto de os antigos galaicos serem uma povoação dispersa onde cada castro é politicamente autónomo, porque daquela também poderse- ia dizer que todos os povos celtas são “castrejos”. A atomização não é algo genuíno dos celtas galaicos. Se bem é certo que pelo facto de partilharem língua, credo, arte.., poder-se-ia falar de nações celtas, mas na altura não existia essa consciência nem mais patriotismo que o da própria família e aldeia. Daquela não estamos perante algo tão singular como para distinguir aos galaicos do resto dos povos celtas. Por outra parte, certo é que a maior distância maior especialização tem lugar e por isso podemos falar de deidades próprias dum ou doutro “castro”, o que acontece em qualquer terra celta, mas está claro que a presença do panteão intercéltico está presente também na Galiza tal e como o testemunha a toponímia. Intentar apresentar o mundo galaico como algo sem raízes, particular do noroeste peninsular que como muito recebeu influências dos povos celtas é pura demagogia intelectual made in spain e que aos pouco está a ficar ignorada e contradita pela comunidade científica internacional.

1.        Mar shampla, gaelicismo: o mesmo que verbi gratia.



Bibliografia
  1. Díaz Santana, Beatriz. Os celta en Galicia: arqueoloxía e política a creación da identidade galega Noia (A Crunha). Editorial Toxos Soutos Serie Keltia. 2002.
  2. Le Roux, Françoise; Guyonvarc’h. “A sociedade celta” Portugal. Publicações Europa-América.1991.
  3. Balboa Salgado, António. “A Galicia celta: a relixión” Santiago (Galiza). 2002.
  4. Conde, María. “Una teoría de investigadores italianos sitúa en Galicia la cuna del mundo celta”. La Voz de Galicia. Sábado 21 de outubro de 2006. Sociedade, página 29.
Espaços web relacionados

  1. Topónimos Celtas em Portugal  http://pt.wikipedia.org/wiki/Top%C3%B3nimos_celtas_em_Portugal
  2. Instituto Galego de Estudos Célticos  http://www.estudosceltas.org/?q=gz/node/45
  3. The Paleolithic Continuity Paradigm  http://www.continuitas.org/textsauthor.html


Reminiscências xamánicas na Galiza Atual: Personagens e Mitologia. (Segunda Parte)

Por David Outeiro.


Apesar do tempo passado, ficaram certas personagens na Galiza atual que considero têm caraterísticas próprias dos xamãs, ou pelo menos manejam os Estados Alterados de Consciência (em adiante EAC). Eis alguns exemplos:


Meigas: Tal e como afirma Josep M. Fericgla na sua obra “Los chamanismos a revisión”: “As meigas galegas não correspondem a única imagem do xamanismo proposto por M. Eliade, mas sem dúvida, trata-se duma forma de ação equivalente ao xamã ameríndio. Podemos considerar que as meigas constituíam uma manifestação do antigo xamanismo celta sobrevivente no SW europeu ate épocas muito recentes: emprego dos enteógenos; acesso por meio dos EAC aos espíritos que moram nos mundos alternativos; aplicação médica das suas ações; luta pelo enigmático poder que possuem os feiticeiros; função adaptógena projetada na sociedade…” 





Em relação aos preparados das meigas, está muito difundida a crença de que empregavam o sapo nos seus unguentos. Algumas espécies do género Bufo contêm Bufotenine, uma substância enteógena semelhante ao DMT da aiauasca. Apanha-se na queima de cinco bruxas de Fago (Aragão) que “Tenian un sapo y lo azotaban con un brezo y cogían lo que le hacían echar y se untaban con ello y iban a donde querian”. Deste jeito tiravam a secreção tóxica que o sapo emprega para se defender dos predadores provocando irritação. Esta secreção contém a bufotenina que se untaria nas vassoiras que as meigas empregariam para se esfregarem. Depois o efeito enteógeno produziria a conhecida visão de voo, as transformações em animais, aparição do diabo, etc…



Pastequeiros: O pastequeiro é um estranho personagem das freguesias de Santa Comba e São Cibrão cuja função é curar o meigalho. O curioso dos santos de ditas freguesias, sempre presentes nas curações é que antes do que santos foram bruxos. O
pastequeiro toma as orações da missa e estas são empregues no ato de curação junto com textos mágicos. O doente terá que achegar três libras de pão e três netos de vinho, dando-lhe a sua parte (que tem proibido comer) às ânimas. Este curioso rito supõe um culto às ânimas dos devanceiros, tendo por objeto a estabilidade do nosso mundo com o Além, tal como fazem os xamãs nas suas comunidades. O ofício transmite-se de pais a filhos.




Espiritados ou corpos abertos: Em 1963, Vicente Risco afirmou sobre eles: “Chama-se corpo aberto ao daquela pessoa viva no qual se introduzia ou pode-se introduzir um espírito estranho, ou aquele no qual falam as almas dos defuntos, bem porque elas querem, bem forçados pelos exorcismos ou obedecendo os conjuros dos bruxos. Trata-se duma sorte de possessão temporal (e ainda momentânea) ou permanente, do corpo dum vivo pela ânima dum defunto, ou por um espírito doutra classe mas que não se confunde com a possessão diabólica”.




Temos de novo a intercessão do xamã entre o nosso mundo e o Além. Muitos xamãs ao longo do mundo afirmam que em ocasiões são possuídos por espíritos que falam a través deles, voluntária ou involuntariamente. Também se pode dar que qualquer pessoa duma sociedade xamánica seja possuída por um espírito, tendo que ser sanada e libertada do seu possessor. Na Galiza atual pensa-se que os espiritados vem-se afetados pela ânimas por causa da sua debilidade. No caso galego, serão os curas os que têm a encomenda de libertar o possuído do seu pesar por meio do exorcismo. Mais recente pode ser o facto de que os espiritados, em lugar de se crerem afetados por um espírito dizem ser possuídos pelo demo. Acho que dito fenómeno deve-se a um EAC quer espontâneo quer produzido pelo jejum, ao que se submetem aquelas pessoas doentes e encamadas. É muito conhecido o Santuário da Virgem do Corpinho em relação aos exorcismo que lá se realizam.

Vedoiros: Batizados com o óleo dos mortos por equivocação, os vedoiros podem ver as ânimas, assim como o lugar que ocupam no Além. Aliás dão notícias de cousas perdidas, de tesouros ocultos e têm também a capacidade de avisar quem vai morrer. O vedoiro é de novo um personagem que como o xamã tem estas capacidades empregando o seu poder “sobrenatural”



Sábias e sábios: São bem-feitores que por dom, tradição ou qualquer tipo de aprendizagem chegaram a esta “categoria”. O seu labor é curar doenças mas também têm a capacidade de ver o futuro e adivinhar cousas relativas a quem estão longe. O seu método de cura é mágico ou mágico-religioso. Por meio de pedras, amuletos ou ervas pode curar o mal de olho, tirar os demos do corpo, os ares (maus os ruins), etc… Temos novamente paralelismos com os xamãs bem-feitores shuar, os iwishin, tsutákratim que eliminam as tsentsak (lanças mágicas dos xamãs malfeitores ou wawékratim) por meio da sua aspiração. Em qualquer caso é comum a luta de xamãs bem-feitores contra os malfeitores, assim como a curação por parte dos primeiros, das pessoas afetadas pelos segundos. Foi famoso o caso da Sábia de Torbeu que entrava em transe extático e punha-se a ladrar como um cão. Seguidamente passava a atinar tudo o que se lhe perguntava.





Mencinheiros e curandeiros: Costumam empregar plantas para curar as doenças. Temos que diferenciar desta categoria aos compoedores já que a sua especialidade são os ossos. Cumpre salientar o caso recolhido por Tomé Martinez na sua “Galicia Secreta”, dum mencinheiro. Este empregava faz poucos anos a Amanita Muscária para entrar em transe. Provavelmente, este fungo era empregado em tempos recentes por mais mencinheiros do País. A Amanita Muscária é um fungo que tem fortes efeitos enteógenos, desde provocar a visão dos fosfenos até ter a sensação de estar a voar. A Amanita Muscária foi empregue pelos xamãs siberianos e inclusivamente o antropólogo Josep M. Fericgla fala do seu consumo até épocas recentes em Catalunha. O emprego deste enteógeno, pelo mencinheiro pode ser interpretado como um método de curação já que os xamãs denominam muitas vezes os enteógenos como medicinas, como é o caso do Peiote na igreja nativa Americana. Este fungo recebe a denominação em Galiza e nalguns casos como “o pão do demo”, nome que pode ser revelador já que os aztecas tinham um sacramento enteógeno denominado Teonanácatl (pão dos deuses, literalmente). Trata-se, tal e como se descobriu o século passado do fungo enteógeno Psylocibe Cubensis. Isto pode nos levar à possibilidade de pensar que a Amanita Muscária quiçá fosse antes da chegada do cristianismo um “pão de deuses” para depois se reconverter em “pão do demo”. Quando os cristãos chegaram a América consideraram os enteógenos como substâncias demoníacas.  Mesmo existe um caso na Galiza dos anos 90 dum cura que proibia aos seus fregueses ingerir qualquer tipo de fungo sob pena de excomunhão, não sabemos se por conhecimento dos seus efeitos enteógenos ou por pura micofobia.


MITOLOGIA

A Mourindade: A voz latina “MAURUS” procede segundo o filólogo Isidro Millán do celta “MRWOS”. Os “Mouros” procedem portanto dum termo que designa os mortos. A pesar disto, temos que ter em conta que os “mouros” são na mitologia galega um “povo mágico”. Este povo tem um habitat subterrâneo, ocupando as profundidades dos megalitos, castros e covas. Os “mouros” são gente possuidora de grandes tesouros, poderes sobrenaturais e abundantes recursos de subsistência. Em algumas ocasiões podem ser benéficos e em outras maléficos no que diz respeito aos homens mas isto vai depender dos desígnios que o homem ou a mulher ocultem, assim como da moral que apresentem. Podem partilhar importantes tesouros com os homens sempre que estes não sejam avarentos e cumpram o que o mouro lhes diz, pois se for o contrário pode haver um desenlace pouco desejável. No mundo da mourindade o tempo é distinto do nosso. Uns minutos na terra dos mouros pode supor anos no mundo superior do homem.



Penso, portanto, que a mourindade se corresponde com o mundo inferior segundo a estratificação em três níveis que costumam fazer os xamãs. No seu caso, a viagem ao mundo inferior está relacionada com uma viagem ao Além, à terra dos mortos. E se os “mouros” são os “mrwos” celtas, são portanto os mortos da nossa mitologia que ocupam o “inframundo”. Como apontamos no capítulo anterior, os EAC propiciam uma conexão com o inconsciente. Portanto os seres que apareçam podem perceber facilmente os desígnios verdadeiros da pessoa, a sua moral que se monstra tal qual é. Talvez seja por isso que é necessário fazer alarde duma moral adequada para se beneficiar dos tesouros dos “mouros”. Uma vez que se acede ao seu mundo produz-se uma alteração temporal e o mesmo fenómeno produz-se por meio da experiência dum EAC no que o sujeito percebe uma modificação do espaço-tempo. Durante este transe extático, o xamã, costuma atravessar o túnel que o desloca ao mundo inferior. O seu reflexo no mundo material seriam as covas e os dólmenes (esqueuomorfos). Uma vez se chega ao mundo inferior da mourindade, poder-se-á aceder aos tesouros que oculta se os “mouros” são benévolos. Poderes sobrenaturais, visão dum mundo maravilhoso…novamente nos lembra a uma experiência de transe extático. Se a viagem foi sucedida, aquele que se adentre neste mundo poderá voltar com os seus tesouros, aqueles que se acham nas profundidades da mente humana
Há que mencionar aparte a “velha moura” (a do arco-da-velha, a que peneira), as mouras das fontes… já que se pode tratar de reminiscências de deidades pagãs.

Lobisomens: Na nossa mitologia existem uma série de pautas que supõem que uma pessoa se possa converter em lobisomem. Muitas vezes a transformação vem dada após a maldição proveniente de algum dos progenitores mas também se produz por ser o sétimo ou nono irmão do mesmo género, por meigalho ou por ter nascido na noite de Natal ou na sexta-feira santa. Em alguns casos, aquele que se converta em lobisomem pode possuir uma pelica de lobo, sendo lobo quando a põe e humano quanto a tira.



Os guerreiros e xamãs de alguns dos antigos povos indoeuropeus acreditavam que tinham a faculdade de se converterem em lobisomens após realizar algum tipo de ritual. Entre os povos celtas, também se dava este facto entre os guerreiros que após a sua transformação desencadeavam uma fúria sobre-humana. A representação conserva-se na coleção da Real Academia espanhola da História.

Cumpre salientar o caso dos guerreiros Berserker, guerreiros viquingues que combatiam com uma pelica de lobo. Afirma-se que provavelmente os Berserker consumissem Amanita Muscaria para desencadear a transformação em lobisomens. Estes guerreiros viquingues semearam de terror lá onde apareciam e mesmo entre companheiros eram temidos. Alguns mesmo chegavam a afogar por se deitarem à agua desde os seus “drakkars” antes do desembarque com o desejo de entrarem em batalha quanto antes.



A figura do xamã também é objeto de transformação. Se nos retrotraímos ao anterior capítulo vemos como o “bruxo” de “Les Trois Frères”, esse ser teriantrópico parece estar coberto por uma pelica que é sinal da sua transformação. Os xamãs sudamericanos dizem se transformarem em jaguar (lá onde os há). A transformação pode vir dada após se vestirem com a pelica deste animal. Se lembramos uma das condições para a transformação que reflexa na nossa mitologia, vemos que se cumpre quando o protagonista se cobre com a pelica do lobo. Portanto, aquele que porte este destino, tanto pode apresentar corpo humano como de lobo uma vez vestida a pelica.

Portanto, estamos novamente perante um fenómeno relacionado com um EAC em relação às práticas xamánicas, mas também guerreiras..

A sociedade do osso: Diz-se que aquelas pessoas que compõem esta sociedade secreta podem viver tanto no mundo dos vivos como no mundos dos mortos. Trata-se de pessoas com práticas similares às da Santa Companha mas em lugar de fantasmas de mortos são “fantasmas de vivos”. Um termo acaído para descrever estas pessoas pode ser a de “corpos astrais”. Uma prática comum dos xamãs é a faculdade de realizar viagens astrais. Ditas experiências são semelhantes às extracorpóreas ou próximas à morte na que o sujeito se vê fora do seu corpo. Em algumas ocasiões os xamãs podem fazer encontros em espírito, quer dizer, podem percorrer os mundos do Além e/ou do Aquém, mesmo fazer encontros mas não com o seu corpo físico, mas com aquela parte do seu corpo que não é material.




Ânimas, Aparições e Santa Companha: Na perspetiva tradicional que temos os galegos do mundo, é frequente o avistamento das ânimas. Em algumas ocasiões trata-se de ânimas que pedem ajuda a um vivo para solucionar um problema não resolvido na terra. Em outras ocasiões podem informar de soluções ou precaver sobre assuntos terrenais como avisar do movimento indevido dos marcos duma finca ou outros assuntos da vida quotidiana. Com respeito à Santa Companha trata-se da comitiva que percorre certos caminhos e que pode capturar um vivo que terá de ir na frente da mesma enquanto não tope outro que o releve.





A comunicação com os devanceiros, a visão dos espíritos ou entres similares é comum no mundo duma sociedade xamánica. Talvez possamos explicar ditas visões em tempos recentes botando mão dos EAC mas em outras ocasiões pode-se dever a interpretações feitas de certos fenómenos naturais.

Foi esta uma pequena resenha do que o chamanismo e os EAC implicaram tanto no nosso passado como no nosso presente. Podemos ver que certos factos do passado, difíceis de compreender, talvez possam ser interpretados desde esta perspectiva. Certamente, tanto no passado como no presente, o espectro da mente humana sempre há de jogar um importante papel em relação a certas manifestações. Cumpre ter em conta, portanto, os EAC relacionados com as práticas religiosas, mágicas ou rituais do nosso passado celta. Partindo desta base podemos fazer uma análise interpretativa que nos permita um maior achegamento à visão que os nossos devanceiros tinham da vida.



Mas também não é necessário olhar para povos ou tempos muito afastados para achar o fenómeno xamánico. Os derradeiros curandeiros, mencinheiros e meigas são o eco desse passado longínquo que esmorece por causa da inexistência dum relevo geracional. A nossa mitologia é também a recordação dessas aventuras levadas a cabo nos mundos que compõem esta realidade misteriosa e desconhecida que de vez em quando aparece subitamente sem sabermos muito bem donde provém. Sejamos pois conscientes deste facto e dignifiquemos essa parte que semelha afastada da nossa globalizada vida. Não permitamos que o legado ancestral esmoreça. Não no-lo podemos permitir…

A origem do xamanismo: de "Les Trois Fréres" às origens do cristianismo. 1ª parte





«Aguarda o inesperado. Se não o aguardas não o reconhecerás quando chegue»

Heráclito

Por David Outeiro

Os ocidentais tendemos a ver os xamãs como personagens pertencentes a comunidades pre-históricas ou lonjanas, gente  misteriosa e estranha que leva a cabo transes incompreensíveis. Sobre os xamãs do nosso passado, quiçá pensemos que já não temos nada a ver com eles, que a achega desta misteriosa gente esmoreceu para sempre. Neste artigo tentarei demostrar que isto não é assim, que para além de existir indivíduos com características xamánicas até tempos recentes, estes tiveram uma incidência considerável na nossa mitologia. Para isso teremos que fazer uma longa viagem, submergir-nos no escuro dos tempos e olhar a gênese da nossa espécie. Será necessário submergir-nos nas profundidades das covas franco-cantábricas na procura dos primeiros sinais, continuar a prestar atenção às pinturas do neolítico e aos petróglifos, investigar na vida druídica e nas práticas priscilianistas. Seguindo este velho caminho perdido no tempo que nos conecta com o passado mais remoto, chegaremos às portas do nosso século á beira da terra da fim do mundo. Será necessário também submergir-nos na profundidade da nossa mente, do inconsciente, da psicanálise,a bioteologia a neurociência… e ver o que nos podem achegar para vislumbrar este mistério. Deste jeito poderemos conhecer qual é a origem da magia, dos deuses, o contato com as ánimas, do caminho que leva ao mundo da mourindade, da origem dos pastequeiros, meigas, mencinheiros….Para isso será necessário meter-nos na profundidade da mente humana, esse grande enigma do que fazemos parte.

O termo xamã provém da linguagem evenki, na Sibéria. Emprega-se para designar àquela pessoa que tem a missão de estabelecer o contato com o além, com o mundo dos espíritos e desse jeito manter a coesão da sua comunidade quando for necessário. Só se entende este fenómeno no contexto duma sociedade xamánica.


O xamã encarrega-se de sanar a sua gente por meio de práticas mágicas ou plantas, de «negociar» com os espíritos da caça, de consultar com os devanceiros, de predizer factos e inclusivamente de defender a comunidade da que forma parte de xamãs malignos. Para isto será necessário que o xamã empreenda uma viagem ao mundo espiritual, ou melhor dito a um deles, posto que é um mundo que costuma estar estratificado. Habitualmente tal estratificação apresenta-se em 3 níveis; o mundo inferior, o meio e o superior.
Para o seu fazer emprega múltiplos objetos mágico-rituais como tambores, pedras, penas de ave, etc. O seixo, é por exemplo um elemento xamánico por excelência, relacionado com o além, aparece colocado desde o interior das grutas paleolíticas, passando pelos monumentos megalíticos e até sendo usado por curandeiros galegos na atualidade. Em função da missão, o xamã deverá lidar com os seres dalgum lugar deste mundo espiritual; lutar com os espíritos malignos, obter conhecimento dos devanceiros, lidar com os espíritos ou deuses da caça, etc…


Tudo isto na nossa «mente racional» pode soar a ciência-fição mas para compreender este fenômeno teremos que compreender o que a nossa mente nos pode trazer: os estados alterados de consciência que veremos mais adiante.

Retrocedamos agora a um tempo indeterminado no passado, esse momento em que o homem se fez homem como é atualmente. Nesse momento, deu-se um salto sem precedentes que nos levou a uma maior capacidade cognoscitiva. Quiçá subitamente, esse novo homem se deu conta da sua própria mortalidade. Para ele o mundo era um lugar caótico e a sua vida dependia da estreita relação com a natureza e os seus fenómenos. O vínculo com os animais de caça era inegável mas também dependia dos ciclos solares e lunares para poder caçá-los

Era imprescindível conhecer o curso das estações para a sobrevivência assim como ter em conta os fenômenos meteorológicos. Deveu ser dramático. Aquele homem antigo olhou em torno de si, á imensidade do céu ateigado de estrelas, começou a fazer-se perguntas. Quê é o que sou eu?, Quê é a vida, e que sentido tem? e sobre tudo: Que é o que há para além da morte e quê rege tudo isso?. Então o homem também começaria a cavilar se poderia intervir no seu mundo, controlar os fenómenos climáticos, viajar ao mundo dos espíritos, lidar com os seres que controlam a caça. Começou-se a dar um fenômeno que chamarei de seleção espiritual, quer dizer, aqueles indivíduos que acreditassem poder controlar o seu cosmos, que após a morte poderia aguarda-los uma nova vida, tiveram maiores possibilidades de sobrevivência. Isto contribuiu a reduzir a sua ansiedade e os indivíduos que tinham este planeamento em relação ao seu mundo tinham mais probabilidades de sobreviver.
Mostra de que existiu este fenômeno evolutivo é um gene descoberto pelo genetista Dean Hamer denominado VMAT2  que mantém que há certas pessoas com maior sentido da espiritualidade do que outras, pondo em marcha processos mentais que desembocam numa experiência espiritual (transcendência, dissolução do ego e união com o tudo, euforia, bem-estar, sensação de contato com o sobrenatural). Estamos a falar de que podemos afirmar a existência de Deus no nosso cérebro, que a nossa estrutura cerebral conta com regiões e mecanismos que têm relação com o fenómeno religioso.
Estudos recentes mostram aliás, que aquelas pessoas espirituais e religiosas têm uma melhor saúde tanto física como mental derivada dos benefícios das crenças sobrenaturais e a transcendência, o que supõe a diminuição dos medos e a ansiedade. Foi neste quadro do fenômeno evolutivo quando surgem os chamãs, aquelas pessoas especializadas em lidar com o mundo sobrenatural; os favorecidos pela seleção natural e os encarregados fazer a coesão da tribo, de equilibrar o mundo físico e o mundo espiritual, ou além.

Cumpre salientar, que no longo caminho da evolução humana, o cérebro não foi selecionado para atender a realidade e reproduzi-la com precisão. Ao cérebro simplesmente lhe interessou a sobrevivência. Essa é a sua meta evolutiva, e para isso cria todo tipo de elucubrações e discriminações com o fim de criar uma determinada realidade. Estamos a falar de que não existe uma única realidade posto que todo o que percebemos como exterior não é mais do que uma criação mental. Tudo surge do interior do cérebro, as cores, as sensações, as formas, as dimensões, as percepções…e tudo isto quer dizer que a realidade racional que procuramos é incerta.

Mas perguntamos: Como é que viajam os xamãs a esses mundos do além?. Quais as ferramentas ou vias que empregam? Ou mesmo são os xamãs pessoas fraudulentas?. É agora quando chega a procura imprescindível para conhecer a base que empregam os xamãs para se mexerem em outros mundos: os estados alterados de consciência. Começando pela compreensão da mente devemos ter em conta a mente consciente e a inconsciente. A mente consciente processa 50 bits por segundo, é a mente que cremos que rege a nossa vida e que pelo tanto nos faz «conscientes». No que diz respeito à mente inconsciente, que opera sem que a tenhamos em conta, processa 11.000.000 milhões de bits. Quer dizer, a maioria das nossas vivências, das nossas percepções, da nossa memória e dos mecanismos que incidem na mente consciente estão na mente inconsciente.

Carl Jung achou neste tipo de mente algo surpreendente: os arquétipos do inconsciente colectivo. Após estudar fontes de distintas culturas e distintos tempos ao longo do mundo observou que certos arquétipos como a serpe, o dragão, a morte, os «diabos», os círculos e os triângulos, a ave como símbolo de libertação e transcendência, o mito do herói e as peregrinações surgem do inconsciente sem saber o porquê. É no inconsciente onde se acha o mundo com o que o xamã terá que lidar e onde terá portanto o encontro com os seres espirituais. Mas para aceder ao inconsciente o xamã terá que desencadear um estado alterado de consciência. Para desencadear este estado existem distintos métodos: praticas extáticas, determinadas danças, técnicas de respiração, jejum, dor, cansaço, ritmos musicais ou enteógenos. Em relação ao tamborileio, podemos dizer que existem estudos que demostram que os hertz cerebrais podem ser modificados empregando um determinado ritmo durante certo tempo.
Sobre os enteógenos (manifestar a divindade em ti) ou psicodélicos (manifestar a mente/alma) consistem em distintas sustâncias naturais de plantas ou fungos principalmente que derivam num estado alterado de conciência. Entre elas podemos citar ao pejote, aiauasca, amanita muscária, psylocibes, datura e um amplo etcétera. Estas plantas ou preparados permitem ao xamã aceder ao inconsciente num estado alterado de consciência e portanto aos mundos do além. Provocam visões, dissolução do ego, sensação de unidade com o cosmos, experiências extracorpóreas, fortes emoções …Apesar desta descrição dum estado alterado de consciência, aqueles que o viveram coincidem em que só o que os experimentou  sabe o que significam já que é inconcebível que seja imaginado num estado ordinário de consciência.
Algumas experiências são tão marcantes como a experiência extracorpórea ou viagem astral que consiste em que o indivíduo que a experimente se vê fora do corpo podendo ver-se desde fora de si próprio e tendo a possibilidade de ver que voa a outros mundos. Uma experiência muito conhecida é a das experiências próximas á morte (ECM) na que se descreve a visão extracorpórea, o túnel, a luz e finalmente o encontro com os «seres espirituais».

As ECM interpretam-se desde a neurociência como o resultado do bloqueio dos receptores cerebrais do glutamato, afirma-se também que se deve a atividade das últimas sinapses e que em tais momentos o cérebro liberta uma grande quantidade de endorfinas que propicia a sensação de grande bem-estar. No entanto, ainda ficam muitos enigmas por resolver com respeito a esta temática. Agora que temos em conta a origem neurobiológica das experiências místicas favorecidas pela seleção natural e os estados alterados de consciência como meio de acesso ao inconsciente podemos continuar com o nosso objeto de estudo.

Imaginemos uma cena acontecida no paleolítico superior; alguém se introduz nas entranhas da terra, dirige-se à profundidade duma cova na que não vive ninguém. Com uma pequena lâmpada de graxa vai profundando na escuridão, no silencio mais absoluto até chegar a um determinado espaço no que refletidas as suas visões…é um xamã. A cova representa o vórtice, esse túnel que se acha no nosso sistema neurológico e que manifesta o inconsciente num estado alterado de consciência. Após ter a visão do túnel chega-se a última fase do estado alterado de consciência no que começam as visões de seres e na que o xamã as vezes se transforma para controlar a caça. Às vezes, a privação sensorial que produzem as covas pode desencadear estes estados. É quando ao aceder ao mundo do além o xamã pode transformar-se num ser teriantrópico (características humanas e animais) e realizar algum rito mágico que influa nas peças de caça. 





O chamado bruxo ou feiticeiro de Les Trois Freres pode ser um exemplo desta transformação, do homem que intenta controlar os rebanhos de caça mediante técnicas mágicas. Alguns têm características aviformes, representando quiçá o voo do xamã ao mundo espiritual.  

Num longo período do paleolítico superior pintaram-se as más variadas cenas nas que aparecem diversas espécies animais que parecem flutuar, as vezes com pontos ao seu redor ou mãos impregnadas sobre elas. Os pontos bem puderam ser os fosfenos que se manifestam na fase 1º dum transe extático (estado alterado de consciência). Os animais aparecem aparentemente desligados do mundo sobrenatural ou flutuando, tal e como se manifestam num estado alterado de consciência. As mãos puderam ser uma representação da posse do animal por parte do xama. O cérebro desta gente era o mesmo que o nosso pelo que não é de estranhar que a pesar do tempo transcorrido pudessem desencadear visões semelhantes.

Milénios depois, já no neolítico, o homem começaria a construir monumentos megalíticos. Nalgumas ocasiões, estes monumentos semelham a representação artificial duma cova, um esqueuomorfo, reflexo novamente do vórtice que o xamã se passa numa das fases dos estados alterados de consciência dos que me pergunto se experimentariam no interior dalguns monumentos megalíticos. No interior das antas, aparecem em ocasiões certas pinturas como espirais, representações em ziguezagues, linhas etc que novamente nos lembram as visões que certas fases dum transe extático manifestam. 





Estas representações não carecem de sentido nem são meras representações das visões. O xamã dar-lhe-ia um sentido as suas visões em função do seu contexto. Um xamã Tucano em ziguezague denomina as representações como o pensamento do pai-sol.

Por volta da idade do bronze (ultimamente aponta-se a um período bastante mais amplo), os petróglifos galegos de estilo esquemático atlântico ou estilo atlântico poderiam representar novamente as experiências chamánicas. Espirais, círculos, estranhos antropomorfos e de novo animais, cérvidas em muitos casos. Os círculos e as espirais são comumente visíveis ao longo das distintas fases dum estado alterado de consciência. No entanto, em relação zoomorfos, provavelmente estejamos em muitas ocasiões perante representações mágicas, como nas que no paleolítico superior tentavam representar a influencia do xamã sobre as peças de caça. 





Ainda assim, os petróglifos galegos podem ter distintos significados mas penso que os xamãs tiveram um papel essencial em muitos casos na sua realização. Como podemos ver, no transcurso da historia, os xamãs e os estados alterados de consciência foram um contínuo. A pesar disto, com o transcorrer do tempo e ao se desenvolverem as sociedades mais complexas, o xamanismo seria parcialmente transformado e institucionalizado dando lugar ao sacerdócio. Nas sociedades célticas dito fenómeno é o druidismo; aqueles indivíduos que tinham um saber religioso, filosófico e incidência política mas que também conheciam as plantas enteógenas e experimentavam transes extáticos. Seja exemplo disto a localização em jazigos centroeuropeos de Canabis nas tumbas célticas. Cumpre nomear as pedras formosas, saunas que segundo alguns autores puderam ser empregadas para desencadear transes extáticos. O emprego de saunas é também comum nos ritos da Igreja Nativa Americana que emprega o pejote no seu culto sincrético atual.





Lembremos também, dentro do mundo céltico, as representações do caldeiro de Gundestrup. No caldeiro aparece o deus Cernnunos, um deus hasteado e da natureza, rodeado de animais numa cena que salvando as distancias faz-nos lembrar ao «bruxo» de Les Trois Fréres. 






De novo aparece um teriantrópico, um deus neste caso, que pode simbolizar a tentativa por parte do homem de controlar os animais. Neste caso está rodeado dum interessante contido simbólico. Outro exemplo é o diadema de Moñes, onde se representa uma cena relacionada com o além, onde estranhos seres portam caldeiros da regeneração. A cena desenvolve-se num âmbito aquático, outro dos lugares que podem visitar os xamãs num estado de transe extático, neste caso é necessário apontar a estreita relação que estabelecem os celtas entre o além e o mar. É interessante apontar, tal e como fizeram muitos autores, a importância que puderam ter os estados alterados de consciência na criação de arte de estilo céltico. 




É interessante apontar também que o xamã, por aceder ao inconsciente é uma pessoa que carga com certo «sofrimento» em favor da sua comunidade. O feito de entrar em transe extático ou xamanizar não sempre é uma experiência agradável. Este prezo que há que pagar por aceder ao conhecimento do além está representado no transcurso da historia e no planeta em múltiplas culturas. Todos aqueles que acederam a essa outra dimensão da mente humana, do inconsciente, sabem que ditas experiências nunca se esquecem. Quiçá seja por isso que Odín apareça na mitologia nórdica carente do olho direito mas conserva o esquerdo relacionado com a visão do além.

A respeito do lado esquerdo, aparece sempre vinculado a visão do além. Tal é o caso de aqueles que acompanhados de alguém que está vendo a Santa Companha só a poderão ver se o «vedoiro» lhe pisar o pé esquerdo. Alguns povos  celtas tinham por costume pintarem o lado esquerdo da cara durante o samhain para evitar visões aterradoras. 


Uma crença celta que cumpre apontar é a de que os guerreiros que «ressuscitavam» e voltavam do além ficariam mudos, quiçá precisamente por ter acedido a essa outra realidade. Quiçá seja por isto também, que no dia de santos ou samhain, quem ultrapassasse Portalém (no Monte do Seixo na Comarca de Terra de Montes) e fizera uma consulta as ánimas, ficaria com a voz rouca no caso de revelar os segredos do além. 





Era habitual que os povos Célticos representassem os crânios dos guerreiros vencidos sem boca, como sinal de que não voltariam e por pertencerem ao mundo do além. Nalgumas ocasiões têm-se achado crânios pertencentes a esta época de inimigos que se enterraram sen mandíbula, pelo mesmo facto anteriormente apontado.




Em relação aos deuses, nalgumas ocasiões representam-se com duas cabeças que olham opostamente, como sinal de influência no mundo dos vivos e no dos mortos.                   





Por outra parte no mundo greco-latino empregavam-se as covas como meio de curação por parte dos pholarchos que permaneciam imóveis durante períodos prolongados á espera da chegada dos deuses. A chegada percebia-se como um zumbido relacionado com a serpe, símbolo iniciático e arquétipo do inconsciente colectivo mas esta curação, supunha a adquisição do conhecimento. Novamente entra em cena o estado alterado de consciência. Seria também neste âmbito cultural onde se realizariam os Mistérios de Eleusis. 

Inumeros estudos apontam ao emprego da cravagem do centeio a qual contém a dietilamida do ácido lisérgico(LSD). Com a chegada do cristianismo continuariam empregando-se enteógenos como sacramento, sendo substituídos pela hóstia e o vinho atuais na missa. Cumpre destacar que os priscilianistas foram acusados na sua época do emprego de psicotrópicos durante os ritos que realizavam nas arvoredas. Se é que Prisciliano bebeu de fontes druídicas, pode que os enteógenos empregados supusessem uma continuidade com respeito ao período anterior. A pesar da proibição por parte da igreja do emprego de enteógenos, assim como a perseguição do seu uso ritual, as práticas perpetuaram-se até hoje. Também o paganismo foi perseguido, como é obvio. Foi por isto quiçá, que o sacerdócio pagão ou druídico foi substituído pelo sacerdócio eclesiástico, mas isso não impediria que certas pessoas continuassem a praticar em certo sentido o xamanismo na Galiza. Como veremos no seguinte capítulo este fenômeno chegou até os nossos dias. Certas pessoas continuaram «xamanizando» em certo sentido até hoje e mesmo a visão xamánica deixou uma funda pegada nas crenças galegas…
 


Bibliografia:
«Los chamanismos a revisión» e «El hongo y la génesis de las culturas» de Josep M Fericgla
«Los chamanes» Piers Vitebsky
«El mundo de los druidas» Miranda J. Green
«Dios está en el cerebro» Matthew Alper
«El gen de dios»  Dean Hamer
«Los chamanes de la prehistoria» Jean Clottes e Lewis-Williams
«Dentro de la mente neolítica» David Pearce e Lewis-williams
«La mente en la caverna» David Lewis-Williams
«Arquetipos e inconsciente colectivo» Carl Jung
«Deuses,mitos e ritos do Monte do Seixo;unha interpretación en clave céltica» Rafa Quintía
«Petroglifos y paisaje social en la historia reciente del NO de la P.Ibérica» Manuel santos Estévez
Documentários de interesse;
Shamanism;Other worlds http://www.youtube.com/watch?v=wE0sDm5ba-4
DMT;La molécula espiritual http://www.youtube.com/watch?v=mOxhIGFj_gk
Del peyote al LSD;una odisea psicodélica http://www.youtube.com/watch?v=H0KDzTTz9zc
Piscotrópicos-Manifestando la mente http://www.youtube.com/watch?v=G2UoX8_ma7Y
Reportagens;
Carl Jung (sobre o inconsciente) http://www.youtube.com/watch?v=CtCI7VrlNuc

Inscrição achada na Crunha a começos do S XIX e gravada num osso pode ser a referência mais antiga com respeito à mítica Atlântida.



Por David Outeiro Fernández 

Segundo o paradigma atual, a escrita mais antiga  é a cuneiforme achada em tabelas e vasilhas de argila de Sumer que foram  datadas por C-14 num período compreendido entre o  3400 e o 3200 A.C. No entanto, há uma série de achados que precedem mesmo milénios a cronologia adjudicada as tabelas sumérias e que parecem mostrar signos de escrita. Estamos a falar de evidências da existência duma escrita na Europa que podemos remontar ao 7000.A.C. Mas o férreo dogma do paradigma dominante é reticente a aceitar a existência duma escrita anterior a estabelecida por ele. Isto provocou que as escritas anteriores às reconhecidas oficialmente permanecessem relegadas ao esquecimento. Além disto, segundo o paradigma atual, foram os fenícios quem introduziram a escrita na península ibérica, em troca, há evidências de que quiçá fossem os fenícios quem apreendessem a escrever na península. Tal hipótese é sustida pela Dr. Ana Maria Vázquez Hoys, á luz de inscrições achadas em sepulcros megalíticos de Huelva. Mesmo, investigações ainda mais polémicas falam na existência duma proto-escrita no paleolítico superior achado no contexto franco-cantábrico denominado ELA (Escritura Lineal Atlântica) por Georgeos Diaz-Montexano.
No que diz respeito à Galiza, há pouco tempo, pudemos ler a notícia duma serie de formidáveis descobertas no castro de Formigueiros. Entre os achados, encontrou-se uma possível inscrição da que se dava conta em alguns meios de informação afirmando que poderíamos estar perante a primeira escritura pré-romana achada na Nossa Terra. A escritura em questão foi achada num peça de lousa na que também se representava um peixe, aparentemente um salmão. Segundo Gonzalo Meijide, o diretor do projecto de escavação do castro, os carateres lembram os alfabetos ibéricos.


Voltemos agora ate começos do S XIX, data na que apareceu o misterioso e impressionante achado que apresento neste artigo. Parece ser que foi neste século, quando, nalgum lugar da Crunha que aparece registado como «Bancal» foi encontrado um osso datado em mais de 6000 anos que apresenta signos de escritura. O osso está na atualidade no Instituto de Paleografia e Filologia Histórica da Academia de Ciências e Letras de Noruega, em Oslo. Apesar da exclusividade deste achado, permaneceu todo este tempo esquecido e passando por coleções privadas até chegar finalmente ao seu destino atual. Não foi até o ano 2003 quando se produziu a sua maior divulgação por causa da obra de Michel Bouvier «L’Art de L’Écriture». Seguidamente, a peça foi objeto de estudo por parte de grandes especialistas já que a inscrição ainda não se tinha identificado. 



Foi em 2005 quando um investigador chamado Georgeos Diaz-Montexano susteve que a inscrição consistia em carateres íbero-tartéssicos. Mas, para além do surpreendente que resulta por si mesmo este achado, temos que acrescentar a maior surpresa que causou a sua transliteração. A hipótese actualmente aceitada pela instituição norueguesa foi a  achegada pelo Professor Diaz-Montexano relativamente à transliteração dos carateres. O resultado foi como «ATal Tarte» pondo-a em relação com a Atlántida-Tartessos. Estaríamos a falar de que há mais de 6000 anos alguém, na atual Galiza, escreveu num osso uns carateres relacionados com a mítica Atlântida que aparece nos textos de Platão, no Timeu e no Crítias. Segundo conta Platão na história da Atlântida, os habitantes deste lugar conheciam a escritura. Estrabo afirmaria posteriormente que os Turdetanos, descendentes dos Tartessos, conservavam a sua história e leis escritas numa gramática que se remonta a 6000 anos antes do seu tempo.



Também, segundo a hipótese defendida por Diaz-Montexano teríamos que pôr em relação a Tartessos com a Atlântida da que fala Platão. Uma hipótese similar, assim como a de que a Atlântida se situaria  na actual Doñana, foi proposta pelo National Geographic junto com a emissão dum documentário sobre o tema neste mês.
No que diz respeito à misteriosa inscrição, comenta Díaz-Montexano o seguinte; «…É impossível negar que esta palavra (ATal) é similar de mais á raiz indo-europeia “*At-l” que aparece no nome de Atlantis, que é uma forma adjetival de Atlas, enquanto que “Tarte” ajusta-se á raiz reconstruída pelos especialistas espanhóis sobre o antigo nome de Tartessos, que seria Tarte-, posto que o sufixo -ssos é de origem egeu ou greco-lídio e acrescentar-se-ia aos nomes de lugares, países ou cidades com o significado de «região», «comarca», «cidade» ou «país», como em Kno-ssos. A terminação em vogal -e da voz Tart-e, poderia corresponder a alguma desinência. É muito difícil assumir que isto seja somente uma simples casualidade. Esta inscrição, confirmaria a antiguidade das escrituras Íbero-Tartéssicas e Atlante (segundo Estrabo e Platão) por um lado, e por outro, confirmaria a identificação da Ilha/Península Atlantis ou «pais de Atlas» com a própria Ilha/Península de Ibéria, como afirma Platão ao dizer que uma região, comarca, distrito ou parte da mesma Ilha/Península Atlantis era chamada Gadeira (Cádiz, Espanha) e que esta mesma região se localizava nas Colunas de Hércules. Em qualquer caso, estamos perante a primeira e única evidência epigráfica achada no mundo, com uma inscrição cuja transcrição fonética se aproxima muito aos nomes de Atlas/Atla-ntis e Tarte-ssos, e que tem mais de 6000 anos de antiguidade..».
Estamos a falar, por tanto, e  possivelmente, da inscrição mais antiga do mundo em relação à Atlântida e que foi descoberta na Galiza, num osso de mais de 6000 anos de antiguidade. Fascinante, não é?

Referências:  

The Shoyen collection: 
http://www.schoyencollection.com/firstalpha2.html#5237-2
Artigos;
http://sicoplastica.blogspot.com/2008/04/la-atlntida-y-tartessos.html

http://www.phistoria.net/noticias-de-historia/La-Atlantida-y-Tartessos-Instituciones-cientificas-de-Noruega-reconocen-hipotesis-Iberica_96.html
http://www.abc.es/20110314/ciencia/abci-national-geographic-situa-atlantida-201103141731.html
http://my.opera.com/Georgeos-Diaz-Montexano/blog/?id=310801
http://www.youtube.com/watch?v=FyDEOuAO2OU
http://www.youtube.com/watch?v=7ThDZqJS4ZA